Substância vulgar consegue atrasar a doença de Machado-Joseph em ratinhos

É uma doença neurodegenerativa que provoca descoordenação motora. Uma equipa da Universidade do Minho descobriu que um suplemento alimentar retarda as suas consequências, como revelaram testes em animais.

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Cerebelo (de ratinho), uma das áreas do cérebro responsáveis pela coordenação motora Universidade do Minho/Sara Silva

Há um suplemento alimentar com baixa toxicidade e eficácia alta – pelo menos nos testes com ratinhos conduzidos por investigadoras da Universidade do Minho, em Braga – que pode ser usado para retardar as consequências da doença de Machado-Joseph, uma doença neurodegenerativa grave. Chama-se creatina, existe no corpo humano e já é usada por atletas para aumentar o desempenho desportivo. Os resultados dos testes em animais são animadores e indicam que pode ser uma boa opção para o tratamento prolongado da descoordenação motora (ataxia), causada pela doença de Machado-Joseph. Só falta encontrar uma empresa que queira apostar nos testes em humanos.

Os testes do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde e da Escola de Medicina, da Universidade do Minho, foram feitos em ratinhos, mas as investigadoras à frente do estudo acreditam que os resultados seriam igualmente bem sucedidos em humanos. A geneticista Patrícia Maciel explicou ao PÚBLICO como foi testada esta substância em ratinhos. Primeiro, foi criado um modelo animal da doença, isto é, um modelo com o gene mutado que provoca sintomas semelhantes aos dos doentes humanos. O sintoma principal da doença – a descoordenação motora – foi verificado em todos os ratinhos em estudo.

Foram então criados dois grupos com 15 ratinhos cada um. De um lado, os ratinhos que seguiram uma dieta normal e do outro os que tomaram um suplemento de creatina. “Tratámos estes animais com fármacos para ver se recuperavam dos problemas motores. E a creatina teve um efeito muito promissor a reverter [os sintomas]”, explicou Patrícia Maciel. 

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Um dos ratinhos das experiências num teste de força Universidade do Minho/Sara Silva

Expostos a uma bateria de mais de 30 testes, para medir a força, o equilíbrio ou a coordenação motora, a equipa percebeu que os ratinhos tratados com creatina tinham melhores desempenhos do que os animais doentes. Testou-se, por exemplo, quanto tempo demoravam a atravessar uma barra, equilibrando-se em cima dela. E verificou-se que os ratinhos sem tratamento “demoram muito mais tempo a completar os testes e muitas vezes nem os completam porque caem”. Nos ratinhos tratados com creatina os “sintomas aparecem mais tarde e são mais ténues”, com uma progressão mais lenta.

O estudo durou um ano e foi repetido mais um ano num grupo independente de animais “saudáveis” para confirmar os resultados. E as conclusões, publicadas na revista Movement Disorders e agora divulgadas em comunicado, foram na linha daquilo que já tinha sido verificado em estudos anteriores, onde se usou a creatina em doentes com esclerose lateral amiotrófica.

Como uma espécie de powerbank

A creatina não é uma substância nova. Na verdade, já é usada com frequência por atletas que querem aumentar a resistência muscular e o desempenho físico. É um suplemento que não precisa de prescrição médica e um boião com 300 gramas custa menos de dez euros.

Funciona como uma reserva enérgica rápida. Patrícia Maciel compara-a a uma espécie de powerbank, um acumulador de energia, pronto a ser usado num determinado momento. “A creatina faz isso nas células, acumula energia, para uma utilização de curta duração. E, portanto, quando ela aumenta, aumenta também a probabilidade de a célula ter energia disponível para fazer as coisas de que precisa”, resume Patrícia Maciel.

No caso da doença de Machado-Joseph, os neurónios das regiões do cérebro que coordenam o movimento, como o cerebelo, deixam de funcionar e morrem. O diagnóstico da doença começa nos aspectos motores: no desequilíbrio, na dificuldade na marcha, nas quedas, na dificuldade em articular a fala, em engolir os alimentos. Os sintomas arrastam-se por um período de cerca de 20 anos, e acabam por confinar os doentes a uma cadeira de rodas e, mais tarde, a uma cama e à morte. Actualmente, não há nenhum fármaco que atrase ou trate os sintomas principais da doença.

Neste estudo, o que se verificou é que os neurónios dos ratinhos que seguiram a dieta com creatina passaram a funcionar melhor e a morrer menos. E poderá acontecer o mesmo em humanos. “No nosso modelo animal, isso acontece nas mesmas regiões do cérebro do que em humanos”, esclarece a investigadora.

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As investigadoras Patrícia Maciel (à esquerda) e Sara Silva João Dias

Não sendo uma cura, as investigadoras acham que este suplemento pode retardar a progressão da doença de “forma muito significativa” e a dose a ser utilizada para esse efeito estaria “no limite inferior” daquela que se usa actualmente em suplementos desportivos – entre dois e cinco gramas, tomados diariamente. “É uma dose segura, e está demonstrado que não há nenhum problema de toxicidade”, conclui Patrícia Maciel.

“Testes clínicos serão sempre um desafio”

Embora a equipa da Universidade do Minho tenha ficado satisfeita com os resultados em animais, antes de se começar a prescrever a creatina a doentes é importante validá-los em humanos. O próximo passo é fazer um ensaio clínico. Esta equipa trabalha ao nível pré-clínico, em laboratório, e portanto não faz ensaios em humanos, mas vai tentar articular-se com equipas de neurologistas para que se façam esses ensaios.

Para este caso em particular, Patrícia Maciel prevê a necessidade cerca de 150 doentes para “fazer um ensaio segundo as regras, com um grupo cego, sem viés”, resume. Os doentes em estudo são normalmente divididos em dois grupos: um que toma o fármaco a ser testado e o outro que toma um placebo. “O ensaio teria de durar pelo menos dois anos, por isso é um investimento grande.”

E o interesse das empresas farmacêuticas em apostar neste tipo de medicamento será sempre “um desafio”, considera a investigadora: “Não é um fármaco que vá dar muito lucro a ninguém, porque já é uma coisa que se vende livremente.” “Será preciso que alguém queira investir num ensaio clínico, mas provavelmente não vai haver empresas interessadas.”

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