Mário Centeno e a invenção da vaca mista

A vaca mista é uma vaca para todos os gostos, e isso torna extremamente difícil a vida a todos os partidos políticos, com excepção do PS.

Nós conhecíamos a vaca gorda e a vaca magra. Mário Centeno inventou a vaca mista. Temos de admitir: é uma invenção de génio. Ninguém pode dizer que o país esteja a viver num tempo de vacas magras, porque a economia cresce, o desemprego desce e a sobretaxa do IRS desapareceu. Mas também ninguém pode dizer que o país esteja a viver num tempo de vacas gordas, porque as cativações continuam, a carga fiscal é a maior de sempre e as crianças fazem tratamentos oncológicos nos corredores do Hospital de São João. Dir-se-á, então, que estamos a viver num tempo intermédio. Mas não é bem isso – estamos, isso sim, a viver num tempo de sobreposição, em que o gordo e o magro coabitam, e é nesse espaço de indefinição, habilmente gerido, que o poder e a popularidade do Governo se têm afirmado, e continuam a crescer.

Vivemos tempos de vacas mistas. A vaca mista é muito diferente da vaca intermédia, que não é gorda, nem magra. O golpe de génio de Mário Centeno está no aproveitamento dessa diferença: a vaca mista consegue ser simultaneamente magra e gorda, dependendo do modo como se olha para ela. Não é uma questão de alimentação, mas de iluminação. Virando o foco para as reposições, temos o Governo do “virar da página da austeridade”, da reposição dos rendimentos, do enterro definitivo do diabo. Virando o foco para as cativações, temos o Governo da disciplina financeira férrea, das execuções orçamentais que vão além dos planos de estabilidade, do Mário Centeno presidente do Eurogrupo. Qual dos dois é o verdadeiro? Ambos são, e nenhum é, porque aquilo que passou a importar não é a adesão à realidade (o peso efectivo da vaca) mas a gestão das expectativas (qual das vacas preferimos valorizar).

A vaca mista é uma vaca para todos os gostos, e isso torna extremamente difícil a vida a todos os partidos políticos, com excepção do PS. Perante um défice melhor do que o previsto, o Bloco de Esquerda engrossa a voz e diz não querer apoiar mais um Governo com vontade de superar as metas estabelecidas com Bruxelas. Catarina Martins disse mesmo: “Para Centeno brilhar, os serviços públicos não podem ficar às escuras.” E Mariana Mortágua escreveu um título ameaçador no Jornal de Notícias: “Não há governos de minoria absoluta.” Mas perante os sucessos económicos de Mário Centeno, tanto o Bloco como o PCP estão num impasse de difícil resolução. A política de cativações vai contra tudo aquilo que sempre defenderam, e a diminuição da dívida pública era suposto ser uma impossibilidade (quem se recorda ainda do famoso Manifesto 74, que em 2014 defendia fervorosamente a reestruturação?). No entanto, irá agora a esquerda deitar tudo a perder, entrando em ruptura violenta com o PS a pouco mais de um ano das legislativas, e deixando os socialistas a usufruírem sozinhos da popularidade da governação? Não creio.

O PSD está numa posição ainda pior. Rui Rio continua caladíssimo, e a seu favor podemos ao menos admitir isto: não há grande coisa que ele possa dizer. Se pedir aumentos para os funcionários públicos vai juntar-se à extrema-esquerda e fazer uma figura ridícula, porque a história de um partido não se apaga de um dia para o outro. Se pedir mais rigor nas contas públicas vai ter o ministro das Finanças a perguntar: “Mais rigor ainda?” A vaca mista de Mário Centeno encostou às tábuas tanto a esquerda como a direita do PS. Sim, é bicho dissimulado e ambíguo. Mas não há como negar o extraordinário golpe político que foi a sua criação. 

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