Porque é que os artistas falam pouco de Lula da Silva?

A feira de arte contemporânea de São Paulo junta no mesmo espaço artistas e coleccionadores, duas comunidades que politicamente podem estar muito desencontradas. Com o seu público classe média-alta, a SP-Arte pode não ter o público mais favorável a Lula da Silva.

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Obras de Noemi Saga Ateli DR
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Obra de Sebastião Salgado DR

Menos de uma semana depois da prisão de Lula da Silva, o ex-Presidente do Brasil condenado a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, começa em São Paulo a feira internacional de arte contemporânea (SP-Arte). Mas ao contrário do que se passou na última Bienal de São Paulo, que coincidiu com a tomada de posse do Presidente Michel Temer depois do impeachement de Dilma Rousseff, não se esperam grandes protestos na feira de arte que dura até domingo no edifício do Parque Ibirapuera, desenhado por Oscar Niemeyer.

Logo à entrada da feira, podíamos encontrar a instalação Brasília (2018), do artista Bruno Faria, um carro completamente escavacado e ferrugento. “Tal como a cidade de Brasília, este carro fabricado no Brasil em 1973 prometia um ideal de modernização. As pessoas estão entendendo perfeitamente que é sobre o processo que culminou agora com a prisão de Lula, tem tudo a ver, mas que já começou há muito.”

O galerista da Periscópio, Rodrigue Mitre, do pouco que viu na feira, não viu nada tão assumidamente político. “As pessoas têm-me dado os parabéns pela coragem e pela ousadia de trazer este trabalho que é praticamente institucional e teria mais lugar numa bienal”, diz Rodrigue Mitre.

Menos directamente político, era o stand de A Gentil Carioca, uma das mais interessantes galerias brasileiras, ou algumas peças que vimos na galeria Vermelho, bem como a secção performance, que abordavam temas ligados à escravatura e à descriminação racial, o que foi possível ver em poucas horas no primeiro dia.

Mas a SP-Arte é o momento do mercado da arte, não de um evento com responsabilidades públicas como uma bienal de arte, que é toda produto de uma curadoria. Talvez seja preciso esperar por Setembro e pela Bienal de Arte, que acontece um mês antes das eleições presidenciais, para sentir realmente o pulso à arte brasileira na sua relação com o poder político.

O público e clientes profissionais da feira, a quem o primeiro dia é dedicado – principalmente os coleccionadores paulistas, da classe média-alta ou alta, entre os quais estão algumas fortunas brasileiras –, pode explicar um pouco a aparente serenidade de uma comunidade, a artística, normalmente mais conotada com a esquerda e com o espectro político a que Lula pertence, o Partido dos Trabalhadores (PT), mas também, como disse uma das históricas galeristas ouvidas pelo PÚBLICO, não houve igualmente protestos que perturbassem a Avenida Paulista, ou seja, fora da feira.

No encontro com os jornalistas, a directora da feira, Fernanda Feitosa, explica que não espera que a prisão de Lula da Silva tenha um efeito negativo nas vendas ou no ambiente da SP-Arte, que na sua 14.ª edição junta 130 galerias de arte, brasileiras e internacionais, entre as quais quatro portuguesas.

Nas vésperas da abertura da SP-Arte, no périplo organizado para os jornalistas estrangeiros, há mesmo pouca gente a querer falar da prisão de Lula da Silva, explicando que querem evitar o clima de “extrema polarização” que se vive no Brasil, nas palavras de muitas pessoas ouvidas pelo PÚBLICO, algumas das quais não quiseram ser identificadas. De qualquer forma, entre o público da feira de arte, a classe privilegiada de São Paulo, também não é difícil adivinhar que estarão alguns dos que actualmente expressam o seu extremo desagrado em relação a Lula, para não dizer algo que às vezes parece mais próximo do ódio.

“O julgamento do Lula já dura há mais de um ano. O caso tem-se arrastado. Qualquer que fosse a decisão, as pessoas estavam preparadas. Houve protesto em Curitiba, onde ele está preso, a uma hora de voo daqui, mas nós não esperamos nenhum impacto aqui”, disse ao PÚBLICO Fernanda Feitosa durante o encontro com os jornalistas.

Embora a directora da feira reconheça que se vivem tempos muito polarizados, ela, que é advogada, sublinhou que o processo de Lula da Silva foi um processo legal, com todos os direitos de recurso devidos: “Podemos ter a nossa opinião, concordar ou não com a decisão, discutir se houve provas suficientes ou não, mas o processo legal devido foi cumprido. Isso, para um país democrático, é a coisa mais importante.”

Fernanda Feitosa, que revelou que tinha votado em Lula nas duas eleições anteriores, espera que se tenha chegado ao último capítulo de um processo que, à partida, só podia ser complicado para os que o apoiaram ou não: “É doloroso condenar e prender um antigo Presidente, especialmente um presidente que foi tão popular, para os que o apoiaram ou não”. O que é importante, acrescenta, é que as instituições legais, como as da justiça, sejam preservadas e saiam deste processo mais fortes.

“Muitos artistas podem até ser críticos do governo de Lula ou do PT, mas o processo que resultou na prisão do ex-Presidente foi muito violento, porque orientado para preservar o poder das elites muito velhas e reaccionárias. Nem todos são petistas, nem lulistas, mas não vejo o meio a comemorar, antes pelo contrário. A bolsa também não comemorou”, explica o curador-chefe do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada, numa das visitas organizadas para os jornalistas durante a SP-Arte. A instabilidade política veio para ficar no Brasil, para a qual não vê saída, e é uma realidade com que as instituições e a comunidade artística se habituaram a trabalhar nos últimos anos, procurando, inclusive, formas alternativas de financiamento. E se, “em teoria”, os coleccionadores estariam mais do lado da oposição a Lula, as coisas estão mais complexas: “Os galeristas ou coleccionadores, que apoiaram anteriormente este processo de moralização, estão desconfiando desta narrativa construída à volta do processo e prisão do Lula. Ela em parte pode ser verdade, mas outra parte serve para defender os seus privilégios e o território [da classe média-alta].”

Pela primeira vez, no dia seguinte ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, uma activista dos direitos das minorias, o Instituto Tomie Ohtake tomou a decisão de cancelar a vernissage de uma exposição. “A exposição, intitulada Fratura, tinha exactamente como objectivo mostrar como a arte pode ser fracturada pela vida concreta. Era impossível abrir nesse dia.”

O PT está sem força”

Nas visitas às galerias de São Paulo, que organizam as suas inaugurações de forma a coincidirem com a abertura da SP-Arte, a prisão do ex-Presidente não está a afastar as expectativas positivas que há em relação à feira este ano, antes pelo contrário. “É um ano atípico, mas imagino que as pessoas cheguem à feira e se vão empolgar. Este ano sinto que as coisas estão um pouco mais favoráveis economicamente. É muito triste ver um ex-Presidente sendo preso, porém acredito que a iniciativa privada não pode fazer grande coisa, a não ser tocar a sua vida”, afirma Marília Rasuk, que apresenta no seu espaço uma exposição de Douglas Gordon.

A galerista Luisa Strina, outro nome histórico do galerismo paulista, é mais contundente em relação ao discurso de polarização entre eles e nós alimentado pelo PT: “Não tem movimento nenhum na cidade. O PT é cachorro morto. Eles falaram que iam incendiar o Brasil, mas eu não vi nada.” Ela, que sublinha que não entende de política, é peremptória na afirmação de que “o PT está sem força”.

Na inauguração de uma exposição do artista Nuno Sousa Vieira, no Consulado Geral de Portugal, a curadora portuguesa Marta Mestre, que trabalha entre São Paulo e Lisboa, diz que não está a sentir um “engajamento” dos artistas contra a prisão de Lula, como se registou na Bienal de Arte de São Paulo, há menos de dois anos. “O espaço da feira de arte é mais hostil a essa expressão de engajamento. Os trabalhos que abordam a questão política são cobertos por uma película. O consumidor da SP-Arte que é coleccionador é tendencialmente conservador e pertence à classe alta.”

Na Galeria Etel, onde teve lugar o encontro da directora da feira com os jornalistas na terça-feira, Lissa Carmona Tozzi opõe-se à leitura de que a prisão de Lula da Silva é um contra-ataque de uma elite que não quer perder os seus privilégios, ela que pertence à classe alta, ou média-alta, que supostamente odeia, ou tem uma grande raiva, do ex-Presidente: “Então, é o contrário disso. A elite, como o Lula, está perdendo os privilégios. Foi tudo muito correcto. Todas as instâncias legais foram cumpridas. Não é contra o PT, não é um movimento partidário, o [senador] Aécio [Neves] também vai ser julgado.” E acrescenta: “Não é por coincidência que os outros populistas da América Latina estão também em xeque.” A mãe, Etel Carmona, a fundadora da galeria que faz reedições dos móveis de muitos dos nomes históricos do design modernista brasileiro, diz que os seus cerca de 150 trabalhadores da fábrica, muitos deles artesãos, “são todos contra o Lula”.

O jovem músico Marcos Ferraz, que vive entre São Paulo e Lisboa, foi dos artistas que esteve em São Bernardo do Campo, onde Lula da Silva passou os últimos dias antes de se entregar à Polícia Federal para ser preso, depois do Supremo Tribunal Federal ter negado o pedido de habeas corpus.

“A classe artística, a da música, com que eu convivo mais, preocupa-se com este momento político. Considera que o impeachment foi um golpe, como eu considero, e que no processo do Lula não foi feita justiça, porque foi um julgamento político. Desde o início nós já sabíamos no que ia dar. Não se tem provas concretas e foi tudo feito de um modo muito mais acelerado com objectivos claros de tirar ele da eleição”, diz o músico da Trupe Chá de Boldo.

Marcos Ferraz, filho do arquitecto Marcelo Ferraz, que fez com Lina Bo Bardi um dos edifícios mais emblemáticos do São Paulo, o Sesc Pompeia, explica que não é um lulista, mas que foi a São Bernardo do Campo participar na manifestação de apoio a Lula porque não faz sentido transformá-lo no maior inimigo do país, como alguns media, como a Rede Globo, estão fazendo: “Não é tanto uma luta pró-Lula, mas, de certa forma, pró-Democracia. Contra o que está acontecendo no Brasil, em que o sistema está sendo golpeado.”

Marcos Ferraz concorda que entre o público da SP-Arte, além de artistas, “há gente com muita grana que vai comprar arte”, e muitos estarão entre os opositores activos do Lula. Há, então, uma classe média-alta que odeia o Lula? – perguntamos. “É uma classe média alta ou mesmo classe alta que em grande parte, embora não dê para generalizar, tem um ódio, sim, do Lula e do PT. É ela que levanta essa bandeira que o PT é o partido mais corrupto da história, o que é um grande absurdo. É um pessoal que fecha os olhos, em grande parte, a toda uma corrupção outra que existe em todos os outros partidos.”

Marcos Ferraz, que sublinha que não é lulista e que inclusive tem muitas críticas, não percebe essa raiva, porque em muitas coisas o Governo de Lula foi de conciliação: “Os empresários ganharam muito dinheiro, os banqueiros ganharam muito dinheiro. Ele não desagradou a essa elite. Então para mim não dá para entender toda essa raiva que existe ao Lula e ao PT. Não é pela corrupção, porque sempre teve corrupção, por isso só posso interpretar como um ódio de certa forma de classe. A figura do Lula contraria aquela ideia que os governantes sempre foram das elites: é um operário nordestino, que não estudou, que não fala direito; um cara do povo, com um passado de luta, que faz um governo que é reconhecido no mundo todo.”

Para além disso, as elites começaram a ver ocupado por outros, pelos mais pobres, um espaço que antes era só dela: “Os pobres começaram a poder andar de avião, a ir para a faculdade, muitas coisas aconteceram durante esse governo do PT. A gente vê muito gente da elite reclamando que não consegue mais ter empregada doméstica porque a empregada quer ganhar mais. É realmente uma coisa do Brasil Casa Grande e Senzala [Gilberto Freire], um Brasil atrasado que não consegue lidar com essas mudanças. Isso gerou muito ódio dessa elite rica contra o PT.”

As pessoas que são contra a prisão do Lula estão muito deprimidas, disse PÚBLICO Fernanda Brenner, directora do Pivô, um dos espaços independentes mais conhecidos da cidade. “Mas é verdade que há menos protestos e que as relações entre as pessoas estão menos violentas. Foram tantas batalhas perdidas. Mas não tem nenhum artista que não esteja pensando no que está acontecendo.”, 

Em Setembro, por altura da bienal, o Pivô está preparado para o seu momento mais assumidamente político.

O PÚBLICO viajou a convite da SP-Arte

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