Timão de Atenas denuncia a ganância que existe em cada um de nós

A nova encenação de Nuno Cardoso inunda o clássico de Shakespeare de crítica ao consumismo e ao egoísmo da sociedade contemporânea. Em cena sexta-feira e sábado no Teatro Municipal Rivoli, no Porto.

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JOSÉ CALDEIRA

Terá sido escrita entre 1605 e 1608 e publicada em meados de 1623, mas ainda hoje Timão de Atenas divide os académicos que estudam a obra de William Shakespeare. Em primeiro lugar, pela discussão em torno do traço colaborativo da sua autoria – acredita-se que o Bardo terá escrito a peça a meias com o dramaturgo Thomas Middleton, seu contemporâneo. Depois, pela ambiguidade do tom, simultaneamente trágico e cómico, que dificultou a sua categorização. Foi, aliás, o carácter experimental do texto que levou Nuno Cardoso a regressar a Shakespeare, “um sítio que é um mundo, é o mundo, onde podemos descobrir sempre novos caminhos para trabalhar sobre o que nos inquieta”. Timão de Atenas, uma co-produção entre o Ao Cabo Teatro e o Teatro Municipal do Porto, está em cena sexta-feira e sábado no Rivoli.

O enredo é de uma simplicidade mordaz e corrente. Timão é um rico e generoso mecenas ateniense que patrocina artistas, políticos e filósofos e distribui afectos e fortuna por todos aqueles que se dizem seus amigos. Só que os convidados que lotam os requintados banquetes e festas de Timão estão mais interessados no seu dinheiro do que na sua amizade. No momento em que fica pobre e encurralado pela dívida, vê-se sozinho e desamparado pelos “amigos” que lhe haviam jurado lealdade. “Timão é uma reflexão sobre a cidade, a pólis, a forma como o dinheiro e o interesse definem a nossa vida em sociedade. Ao mesmo tempo, é uma peça sobre a misantropia”, explica Nuno Cardoso ao PÚBLICO.

Enquanto criador, defende, é importante “encontrar novas formas de comunicar textos que são importantes para o questionamento colectivo dos cidadãos”. É essa elasticidade de abordagens que vemos neste palco onde os cinco actos do original se transformam em duas partes (com a duração aproximada de 2h20). A primeira passa-se numa casa de banho pública que funciona simultaneamente como o palacete do protagonista; é nesse espaço que encontramos o Timão das pompas e dos excessos, rodeado de personagens-tipo como o Pintor, o Poeta e o Joalheiro, que procuram tirar partido das “mãos largas” do protagonista e, posteriormente, lhe negam ajuda quando se vê endividado.

Há uma cena intermédia que mostra o banquete armadilhado por Timão para se vingar dos bajuladores que o traíram e que serve de transição para a segunda parte, passada num parque de estacionamento. Aí encontramos o Timão mendigo e isolado da Atenas que o injuriou. Abandonado, é quando encontra ouro – neste caso, uma máquina multibanco avariada que dá dinheiro a toda a gente – que recebe visitas dos velhos “amigos”. Mas a miséria em que se encontra não lhe serve de aprendizagem. Em vez disso, repudia, enraivecido, a cidade que exaltava no início e volta a dar dinheiro a Alcibíades, renomado capitão do exército e seu amigo.

A dívida como tomada de consciência

“Shakespeare é fantástico porque encerra nas suas obras o pior e o melhor da índole humana”, aponta Nuno Cardoso. Além do círculo de interesseiros que rodeia o protagonista, há dois elementos que mantêm a sua integridade do início ao fim: Flávio, o fiel criado que alerta constantemente o seu amo para o exagero dos seus gastos, hipotecas e empréstimos; e Apemanto, o mais cínico dos atenienses, que marca presença nos banquetes não para desfrutar deles, mas para ser a voz disruptiva da razão que contrapõe as idealizações de Timão.

O papel do dinheiro e do material nas relações humanas é uma questão transversal ao século XVII de Shakespeare e aos dias que correm. “A avareza, a inveja, todos os pecados capitais existem desde o início dos tempos. Nenhum homem é inteiramente bom ou mau, face às circunstâncias é que vemos para que lado tende”, afirma o encenador, notando que “quando há algum problema, as pessoas são extremamente egoístas e individualistas”.

Timão de Atenas confronta uma sociedade consumista e gananciosa que se esconde atrás de uma vida dupla. “Vamos tomar um copo ao fim do dia, vestimos roupa bonita, fazemos jantares com os amigos, parece que vivemos numa sociedade perfeita. Por outro lado, a realidade dentro de portas é muitas vezes a da dívida, dos cartões de crédito e da angústia provocada por tudo isso. A dívida é uma das maiores tomadas de consciência que tivemos nos últimos anos”, conclui Nuno Cardoso.

Depois de dois dias no Rivoli, o espectáculo ruma ao Teatro Aveirense, em Aveiro (21 de Abril), ao Theatro Circo, em Braga (27 de Abril), e ao Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães (5 de Maio). Depois, deverá abrir a temporada de Outono do São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, onde ficará em cena durante todo o mês de Setembro.

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