“Leio o padre António Vieira para me lembrar que sou português”

Há uma década o músico Tiago Guillul e a sua produtora Flor Caveira atingiram o estrelato doméstico. Nos anos que se seguiram, Guillul, por decisão própria, teve um eclipse parcial. Regressa agora com o seu nome civil, Tiago Cavaco, e traz um livro de sermões e um disco com o mesmo título, Milagres no Coração.

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Milagres no Coração é uma colectânea de 24 sermões pregados entre Setembro de 2011 e Março de 2012, quando o pastor Tiago Cavaco sentiu necessidade de fazer desaparecer o músico Tiago Guilul Rui Gaudêncio

Em 2008, o músico Tiago Guillul (nome artístico de Tiago Cavaco) editava o seu quarto disco, IV . O seu nome e o da produtora e editora que dirigia – que apesar de já existir há algum tempo, se revela por essa altura – a Flor Caveira, adquiriram uma projecção pouco usual na imprensa e junto do público. Com ele como produtor surgiram os nomes de Samuel Úria, B Fachada, a banda Os Lacraus (de que Guillul era membro), entre outros. Mas havia um pormenor que tornava aquela cena musical, de certa forma liderada por ele, ainda mais particular: Guillul era pastor da Igreja Baptista e alguns dos músicos tinham também começado as suas aventuras musicais, havia mais de uma década – na altura com influências do hardcore e do punk-rock – na Igreja Baptista de Queluz. Apesar da intensa actividade musical nesse ano de 2008 e nos dois anos seguintes, a ocupação pastoral de Tiago Cavaco (aka Guillul) não esmoreceu, e ele trabalhava então para abrir um novo espaço de culto em São Domingos de Benfica. “Foi depois desta altura que tive necessidade de fazer desaparecer o Guillul. Por um lado, isso poderia corresponder a um certo cliché artístico do indivíduo que faz música e que de repente tem o problema de processar individualmente a sua identidade, e acha que um ajuste no nome, de alguma maneira, pode compor as coisas”, confessa agora Tiago Cavaco numa conversa a propósito do lançamento de Milagres no Coração (edição Quetzal), uma colectânea de 24 sermões pregados entre Setembro de 2011 e Março de 2012. E continua: “Na altura senti a necessidade de ser o pastor que também era músico, e não o contrário. Precisei de assumir a minha vocação principal, conjugando coisas como a palavra pregada, escrita e cantada. A música e os textos são parte da minha vocação. Mas centrei-me sobretudo na tarefa de cuidar dessa igreja nova.”

A vontade súbita de “acabar com o Guillul”, e também com a produtora Flor Caveira – o que não chegou a acontecer – foi talvez uma decisão inadvertida, apesar de hoje confessar que à época teve alguma consciência disso. De certa forma, sente agora algum arrependimento. “Talvez hoje não tivesse coragem de o fazer. Houve uma espécie de auto-sabotagem na minha carreira musical, que hoje até lamento porque gostava que os meus discos voltassem a ser ouvidos com a mesma atenção que o eram nessa altura. Houve ali um momento abençoadamente cego em que quis cortar, e em que quis acabar também com a editora”, conta. Mas os colegas músicos não o deixaram, e fizeram questão de continuar. E recorda, entre risos, uma frase de Samuel Úria, dita então: “Vou guardar a tua Caveira para quando mudares de ideias”. E de facto assim foi, quando mais tarde, “há uns dois anos”, se sentiu reconciliado.

Quando isto aconteceu, andava Tiago Cavaco a ler a escritora americana Flannery O’Connor [1925-1964], que, a crer numa entrevista dada nessa altura, o terá influenciado na decisão. A admiração que tem por ela justificou que em 2011 compusesse e gravasse com a banda Os Lacraus, Canção para Flannery O’Connor. “Ela é de facto uma grande inspiração. Costumo ler o livro que recolhe a sua correspondência, The Habit of Being. É daqueles autores, daquela meia dúzia, que me dizem muito”, confessa agora. “A Flannery é uma espécie de leitura devocional, não a leio todos os dias mas faço-o frequentemente.”

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Rui Gaudêncio

A disciplina de leituras matinais de Tiago Cavaco leva-o a ler, de maneira inevitável, a Bíblia. Lê-a toda uma vez por ano. “É o mínimo que se pede a um pastor”, diz. Mas há trê autores que lê também amiúde, nem sempre com a disciplina de o fazer todas as manhãs. Para além de Flannery O’Connor lê também devotamente Lutero e o padre António Vieira. “Acho uma tripla importante porque sendo dois católicos e um protestante, o protestante chega para os dois católicos”, diz entre risos. “O Lutero é larger than life, é um autor fundamental. Do Vieira ando a ler a História do Futuro, que é uma coisa muito difícil de ler, muito dispersa. Mas é um trio que me ajuda a estar junto de referências que pessoalmente me são caras. No caso da Flannery é também pelo aprumo estético, no caso do Vieira para me lembrar que sou português – apesar de não saber bem se o Vieira é, necessariamente, a melhor maneira de nos lembrarmos que somos portugueses.

Os sermões

Não deixa de ser curiosa esta ligação ao padre António Vieira, de alguma forma pressentida por Ricardo Araújo Pereira que no prefácio ao livro agora publicado, Milagres no Coração, diz que o modelo de pregador de Tiago Cavaco se tornou outro que não o de Vieira, e esclarece: “Vieira pregou o Sermão da Sexagésima na Capela Real; o Tiago pregou os seus numa cave em São Domingos de Benfica. Onde Vieira é cativante, o Tiago é duro; onde Vieira é complicado, o Tiago é simples e claro; onde Vieira cita o texto latino da Vulgata, o Tiago cita Nick Cave.” Perguntámos qual a influência do pregador setecentista num actual pregador baptista, que respondeu: “Quando há dez anos a igreja começou, estava demasiado personalizada em mim, era um grupo pequeno, talvez umas quinze ou vinte pessoas. Foi quase começar uma igreja como começas uma banda. Tens uma série de heróis, e de afinidades estéticas que queres ver cumpridas. Na altura ler o Vieira era uma inspiração para ter ali, uma espécie de aprumo estético. Mas à medida que a igreja foi crescendo e que a vida da comunidade começou a ser mais a vida das pessoas, há uma homilética do Vieira que às vezes atrapalha um pouco.” Depois, e ressalvando que pode estar a generalizar, acrescenta que num contexto católico é mais fácil tolerar um padre muito culto e até intrincado – como é por vezes o caso de Vieira – porque o peso da pregação é menor do que no protestantismo. Para Tiago Cavaco a simplicidade é fundamental, como esclarece no prelúdio ao livro dos sermões agora publicados.

Apesar de ter crescido numa família protestante baptista, a sua formação universitária está nos antípodas disto, fez Ciências da Comunicação, “um curso sobre o texto, sobre ler, o que é que é possível comunicar, há nele uma paixão pelo texto, mas um cepticismo sobre a possibilidade de o texto poder dizer coisas em concreto”. Desde a altura em que saiu da faculdade até hoje, diz ter feito “um percurso de conciliação com a palavra”, a palavra que deve cumprir um papel que passa pela simplicidade. Por isso defende que a pregação deve ser simples, apesar de, por vezes, ao lermos estes seus sermões pensarmos num denominador comum que não se afasta de uma ideia de simplicidade na forma mas de complexidade no conteúdo. E acrescenta ainda: “No culto protestante as pessoas estão conciliadas com o facto de uma leitura não esgotar o texto. Por outro lado, também não se martirizam demais com tudo o que o pregador disse. Há uma convicção profunda de que a compreensão que é uma graça que nos foi dada, é aí que o nosso racionalismo é aliviado por um conceito fundamental, para nós, que é a graça. Ou seja, tudo aquilo que tu percebes não é porque és muito inteligente, mas porque te foi dado o poder de perceber.”

O evangelho de Marcos

Todos os sermões incluídos em Milagres no Coração têm por base o evangelho de Marcos. Em 2011, quando Cavaco fica à frente da igreja baptista de São Domingos de Benfica, o grupo de crentes era pequeno e isso permitiu-lhe uma abordagem diferente do habitual, talvez menor ortodoxa, e quis testar coisas que em igrejas maiores, segundo ele, seriam impossíveis. “Uma delas foi pegar num evangelho e lê-lo do princípio ao fim. Nós éramos jovens, éramos poucos e sentíamo-nos livres. O evangelho de Marcos é mais sobre a acção e não tanto sobre os discípulos. Marcos dá os elementos mais imediatos, não é tão profundo como João, e acaba por ser uma provocação feita de uma maneira fraterna: vamos lá perceber quem é este Jesus. Líamos e tomávamos notas daquilo que nos chocava, pois a prosperidade espiritual que o texto quer suscitar vem dessa intranquilidade que o evangelho muitas vezes passa.”

Mas Tiago Cavaco nunca deixou de fazer também discos, o ímpeto para fazer música não desapareceu com a maior entrega à pregação. E foi em 2016 que voltou como Tiago Guillul, com o disco Bairro Janeiro, o bairro onde cresceu na Amadora. Mas no ano passado fez uma viagem ao Brasil, e isso parece tê-lo marcado bastante, como confessou, e quis fazer um disco “ainda no calor da emoção”. Estava então a preparar este livro que agora chega às livrarias, e deu-lhe também o título Milagres no Coração, que é, aliás, o título de uma canção do disco, inspirada no encontro de uma mulher sírio-fenícia com Jesus, episódio contado no evangelho de Marcos. “É um cruzamento entre texto e música. É um disco assinado com o meu nome porque ele vem mais à boleia dos textos. Não o misturei com o Guillul porque esse tem um espaço mais consolidado, este decidi deixá-lo um bocado à parte.”

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