De Lula a Bruno de Carvalho: olhar e não querer ver

Na medida em que admitir que eles falharam é admitir que nós falhámos, preferimos fechar os olhos à realidade e aderir acefalamente a quem está sempre disponível para pensar por nós.

Lula da Silva faz um discurso interminável em cima do telhado de um sindicato, insultando a comunicação social, enlameando a justiça, afirmando que a sua prisão irá provocar “orgasmos múltiplos” aos seus detractores, e chegando ao ponto de garantir que foram os tribunais brasileiros a apressar a morte da sua mulher. Em qualquer lugar do mundo, este seria o discurso de um demagogo e de um populista. Se acaso Donald Trump fosse preso, diria mais ou menos aquilo, só que de fato e gravata, em inglês e na Trump Tower. A demagogia, a manipulação, o ressentimento e o recurso às teorias da conspiração seriam iguaizinhas. E, no entanto, para a esquerda portuguesa, Lula da Silva, o homem do Mensalão, é um preso político e a pobre vítima – palavras de Catarina Martins, grande pilar do governo da República Portuguesa – de “um golpe da direita reaccionária, racista e fascista”.

Bruno de Carvalho anda há anos a utilizar uma linguagem inqualificável, numa confusão permanente entre a pessoa e o presidente do Sporting, anunciando o nascimento de filhos nos ecrãs do Estádio de Alvalade, totalmente obcecado pelo seu ego e pela sua imagem, implacável com as críticas, ao ponto de ter organizado uma assembleia geral para poder calar mais facilmente as vozes incómodas, e na qual chegou ao ponto de listar que jornais os sportinguistas deveriam ler e que canais de televisão deveriam ver. Em qualquer lugar do mundo, esta seria a postura de um líder populista e autoritário. E, no entanto, Bruno de Carvalho teve 90% dos sócios a apoiar os seus desvarios totalitários até ao dia em que as frustrações se viraram contra o plantel do Sporting. Só nesse momento é que milhares de sportinguistas perceberam enfim que Bruno de Carvalho se estava a comportar como sempre se comportou – e que esse comportamento era inadmissível.

Todos nós acreditamos em pessoas, partidos, religiões, clubes, com os quais estabelecemos relações emocionais profundas. Não tem mal algum, com esta condição: jamais permitirmos que essa rede emocional – seja ela clubística, religiosa ou ideológica – se torne impermeável à realidade e suspenda o nosso próprio pensamento. É a isso que chamo “olhar e não querer ver”. Quando as nossas paixões se sobrepõem aos factos mais elementares ficamos rapidamente nas mãos dos demagogos, dos fanáticos e de todas aqueles que queremos tanto que estejam certos que nunca deixamos que estejam errados, mesmo quando somos confrontados com as estrondosas evidências das suas falhas. Na medida em que admitir que eles falharam é admitir que nós falhámos – porque avaliámos mal o seu carácter ou depositámos esperanças infundadas em alguém –, preferimos fechar os olhos à realidade e aderir acefalamente a quem está sempre disponível para pensar por nós.

Há pessoas dissimuladas que nos enganam. Eu isso percebo. Mas tenho dificuldade em aceitar que possamos ser enganados por aqueles que andam há anos a mostrar aquilo que são, e aquilo que estão dispostos a fazer, mesmo diante de nós. Foi o que aconteceu com Lula da Silva. Com Bruno de Carvalho. Com José Sócrates. Toda a gente sabia quem eram. Não apenas os mal-informados, os distraídos ou os palermas – toda a gente, milhões de seres inteligentes, insensíveis ao autoritarismo, à demagogia ou à corrupção. Orwell dizia que é preciso uma luta constante para ver aquilo que está à frente do nosso nariz. É impressionante a quantidade de gente que todos os dias continua a perder essa luta.

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