Exuberância e introspecção em dois intérpretes fora de série

O baixo-barítono Bryn Terfel e o pianista Grigory Sokolov, figuras de culto no circuito melómano, passaram pela Gulbenkian.

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O baixo-barítono Bryn Terfel estava há muito ausente dos palcos lisboetas DR
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O pianista Grigory Sokolov, visita assídua da Gulbenkian e da Casa da Música DR

A temporada Gulbenkian contou na última semana com a presença de mais dois intérpretes de eleição. Pertencentes a mundos musicais bem diversos e com personalidades contrastantes, ambos constituem figuras de culto para muitos melómanos. Refiro-me ao baixo-barítono Bryn Terfel, que actuou pela primeira vez na Gulbenkian depois de longos anos de ausência dos palcos lisboetas (na década de 1990 cantou sob a batuta de Eliot Gardiner no Teatro Nacional de São Carlos, num memorável ciclo dedicado às óperas de Mozart) e ao pianista Grigory Sokolov, visita assídua do Grande Auditório da Avenida de Berna mas também da Casa da Música, sempre acompanhada por fiéis seguidores que aguardam ano após ano as suas interpretações surpreendentes e o ritual final dos seis encores.

Bryn Terfel veio acompanhado pelo maestro Gareth Jones, seu habitual colaborador e tal como ele originário do País de Gales, e apresentou-se com a Orquestra e o Coro Gulbenkian num programa que pretendia mostrar as suas múltiplas facetas como cantor, sem estabelecer um fio condutor ou uma temática agregadora do repertório. Alguns êxitos instrumentais e corais da ópera oitocentista e de musicais dos século XX permearam um alinhamento que confirmou Terfel como cantor portentoso e actor nato. Começou por interpretar a “ária do assobio” do Mefistófeles de Boito, Son  lo  spirito  che nega sempre, assumindo desde logo uma atitude muito teatral (como se estivesse num palco de ópera e não apenas em situação de concerto), e personificou depois com veemência e perspicácia a figura de Falstaff através da ária Ehi! paggio! da conhecida ópera de Verdi. Aos dotes vocais de Terfel (ampla extensão vocal, volume, flexibilidade dinâmica e beleza tímbrica) unem-se uma cuidada atenção ao texto, à clareza da pronúncia em várias línguas, à dramaturgia e à psicologia das personagens. Em conjunto com o seu forte carisma, estas qualidades fazem dele um cantor de excepção. Com especial apetência para papéis cómicos, é suficientemente versátil para igualmente assumir com êxito personagens que exigem grande profundidade e enormes desafios vocais. Assim o demonstrou com A Despedida de Wotan d'A Valquíria de Wagner, ainda que nesse caso a orquestra se tenha ocasionalmente sobreposto à voz, e especialmente na Morte de Boris, do Boris Godunov de Mussorgsky, numa interpretação tocante que foi um dos momentos altos do concerto e contou com equilibrada sintonia da orquestra.

A parte final do programa foi mais leve, incluindo trechos tão famosos como Some enchanted evening (do musical South Pacific, de Richard Rogers/Oscar Hammerstein II, do qual foi interpretada também a Abertura) e If I were a rich man (de O Violino no Telhado, com música de Jerry Bock). Em especial neste último, Terfel deu novamente asas à sua contagiante teatralidade, ao seu humor e à sua beleza vocal. Como encore, interpretou ainda uma canção de embalar do País de Gales.

O Coro Gulbenkian teve boas prestações no famoso Va, pensiero do Nabucco e no Coro dos Ciganos de Il Trovatore, de Verdi, assim como no Coro dos Peregrinos do Tannhäuser, de Wagner, e a orquestra tocou algumas aberturas verdianas (Nabucco e La Traviata), mas neste caso o maestro Gareth Jones apostou mais no brilho imediato da acentuação rítmica e da dinâmica do que em leituras mais subtis.

A exuberante atitude de Bryn Terfel em palco contrasta radicalmente com a sobriedade e a introspecção de Grigory Sokolov. A diferença não advém apenas daquilo que as respectivas condições de cantor e pianista naturalmente induzem, mas da personalidade e da forma de relacionamento com a música. Sokolov entra no palco sem olhar para a assistência e parece ter como único foco o instrumento e a própria música, deixando toda a comunicação no plano puramente sonoro. A primeira parte do último recital foi preenchida com três Sonatas de Haydn (nº 32, em Sol menor, Hob. XVI: 44; nº 47, em Si menor, Hob. XVI: 32; e nº 49, em Dó sustenido menor, Hob. XVI: 36) interpretadas com meticulosa clareza de articulação e agilidade e em forte sintonia com a linguagem e o estilo de Haydn, no qual se combinam heranças barrocas, os novos rumos do Classicismo e traços expressivos do movimento estético Sturm und Drang. Denotam também a transição da escrita para cravo para os recursos do pianoforte. Sem pretender imitar esses instrumentos, Sokolov evoca contudo admiravelmente o universo sonoro dessa época, recorrendo a gradações dinâmicas que abrangem uma paleta mais circunscrita, mas que são criteriosamente aplicadas em função do discurso musical e atingem eloquente poder expressivo.

Na segunda parte, nos quatro Impromptus op. 142/D. 935, de Schubert, o pianista conduziu-nos através de uma jornada apaixonante desde o início declamatório da primeira peça, seguida pelos seus imaginativos episódios contrastantes, até aos desenfreados ritmos dançantes do nº 4 (Allegretto scherzando), passando pela nobreza evocativa do minueto do nº 2 e pela elegância do tema e das variações (sobre o tema da música de cena de Rosamunde) do nº 3. Ao mesmo tempo que realçou a identidade de cada peça, Sokolov geriu a arquitectura do ciclo como um todo coerente. A sucessão de encores começou com o quarto Impromptu da série op. 90 e como é habitual fez incursões no Barroco (através de Rameau) e de peças recorrentes nas já lendárias sessões extra-programa de Sokolov como a valsa de Griboyédov.

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