Ambiente dá "parecer final" desfavorável a construção de hotel em Monte Gordo

Município de Vila Real de Santo António é acusado de se ter apoderado de um terreno do Estado, que vendeu-o para construir um hotel. Só que este não foi autorizado.

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Terreno na praia estava no domínio hídrico, mas foi vendido a um privado Enric Vives-Rubio

Não há lugar para se construir mais hotéis na faixa de risco, à beira das dunas da praia de Monte Gordo. O parecer é da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), emitido na sequência da venda, pela autarquia, de um lote para edificar um empreendimento encostado ao areal. Afinal, o terreno, transaccionado pela câmara de Vila Real de St.º António, por 3,6 milhões de euros, nem sequer pertenceria ao município, e faz parte do património do Estado, segundo o próprio Estado.

O ministério das Finanças foi alertado para esta situação, em 2010, mas nada fez para defender o interesse público. Segundo o Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Vilamoura - Vila Real de St.º António, a parcela situa-se na faixa de protecção à linha de costa e tem de ser acautelada a salvaguarda do sistema dunar.

A nova unidade hoteleira tinha obtido viabilidade da Administração da Região Hidrográfica do Algarve para que pudesse vir a ser construída a 15 metros de distância da praia, violando os regulamentos do POOC. Uma vez denunciada a situação, em Fevereiro do ano passado, a APA mandou revogar a decisão administrativa e notificar o município da decisão, que este não contestou. 

“Concluo não ser de todo possível acompanhar o entendimento da ARH sobre o enquadramento da unidade hoteleira no POOC”, referiu o vice-presidente do Conselho Directivo da APA, António Ribeiro, em carta dirigida aos serviços regionais, em 17 de Março de 2017.   Além de se tratar de terrenos incluídos na faixa de risco, escreveu, “pressupõe-se estarem integrados no domínio público marítimo ou privado do estado”. 

Respondendo às perguntas colocadas sobre este assunto pelo deputado Paulo Sá, da CDU, o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes,  concretizou: “foi emitido parecer final desfavorável à pretensão em causa, parecer que sendo vinculativo, inviabiliza a execução da pretensão”. A proposta de projecto deste hotel, justificou, “não se enquadra nas disposições regulamentares do POOC”.

Quanto à titularidade do terreno, o ministro subscreveu a informação que já tinha sido prestada pela APA: “É entendimento da Agência Portuguesa do Ambiente que a parcela de terreno em causa se localiza em domínio hídrico, integrado no domínio público do Estado ou no seu domínio privado”.

Todavia, o caso não está encerrado, porque os investidores privados ( Hoti Star- Portugal Hotéis, SA) recorreram da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF), que mandou suspender o  processo de licenciamento do projecto. E município, que vendeu um terreno que, tudo indica, não lhe pertencia, procura entretanto junto da administração central encontrar uma saída para não ter de vir a devolver o dinheiro da venda e, eventualmente, indemnizar o promotor.

O “desconhecimento” do ministro

Como é que a câmara se apropria de um terreno que faz parte do património do Estado? A resposta a esta questão remonta aos anos 40, numa altura em que quase toda a frente de mar de Monte Gordo estava integrada no Domínio Público Marítimo. À medida que turismo foi crescendo, os terrenos com potencial urbanístico foram sendo alvo de cobiça, sobretudo os que se encontravam junto à praia.

Assim, em 2010, já com o sector em franca ascensão, a câmara decide transferir para o Domínio Público Municipal a titularidade da frente marítima – toda a zona que vai do núcleo piscatório ao hotel Vasco da Gama, que abrange, no total, mais de sete hectares . A parcela de 6.376 metros quadrados, vendida ao grupo Hoti Hotéis para construir um hotel com da marca Meliá, é apenas uma das fracções .

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Ao mesmo tempo que procura atrair investidores privados, a autarquia desenvolveu um plano de requalificação da zona balnear, construiu um passadiço pedonal com dois quilómetros de extensão, e apresentou uma proposta de construção de oito novos hotéis nesta faixa do litoral. “Não conheço nenhum caso de nenhuma câmara que se tenha apropriado do Domínio Público Hídrico”, respondeu o ministro do Ambiente, quando questionado pelo PÚBLICO, esta semana, a propósito deste caso.

O mesmo entendimento não teve ex-ministra do Ambiente, Dulce Pássaro, que informou em 4/5/2011 a Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, sobre a alegada perda de património do estado, e solicitou um parecer jurídico “acerca da forma como o Estado deve actuar de modo a acautelar os seus interesses”. Manuel Gouveia Pereira, adjunto da então ministra do Ambiente, escreveu que os actos praticados pela câmara “configuram actos nulos, nos termos da lei, podendo a referida nulidade ser invocada a todo o tempo”.  

Na altura, Dulce Pássaro sublinhou com um  “visto com preocupação” a mudança do titular da propriedade.  Mas nada foi feito, da parte do ministério das Finanças.

O recurso à figura de usucapião, utilizado pelas câmaras para se apoderarem das zonas marítimas mais cobiçadas pelos interesses imobiliários, não sucedeu apenas em Vila Real de Stº António. Em Olhão, verificou-se uma situação idêntica – a câmara também alienou terrenos que pertenceram ao Domínio Público Marítimo (PÚBLICO 11/07/2017).

A clarificação da sobreposição de competências entre as várias entidades com jurisdição na faixa marítima está por esclarecer há décadas, gerando conflitos entre a administração local e regional. Por conseguinte, numa altura em que estão a ser revistos os POOC, os municípios entendem que a descentralização também passa por aqui. E o Algarve volta a estar no centro das atenções.

A ministra do Mar, Ana Paula Vitorino criou, há cerca de um ano, criou um grupo de trabalho para estudar a passagem dos portos do Algarve para as autarquias. As decisões ainda não foram tomadas.

O último hotel à beira-mar

A evolução da linha da costa está a ser estudada pela APA há alguns anos, sem que se conheça o resultado. O ministro Matos Fernandes, em resposta ao deputado comunista Paulo Sá, justificou: “Os procedimentos exigem tempo e uma análise cuidada e precisa, encontrando-se em fase conclusão”. A meio da semana, quando se deslocou ao Algarve, João Matos Fernandes defendeu a “necessidade de depositar areia, seja nas praias, seja no cordão dunar, de forma contínua”.

O custo destas operações, disse, é o preço a pagar para manter o ecossistema, num cenário de alterações climáticas “Já foi feito o último hotel à beira-mar”, reafirmou, sublinhando a ideia de que não vai permitir mais construção em cima das arribas ou junto às dunas.

A passagem das palavras aos actos, é o que esperam os proprietários do edifício “Rosa dos Ventos”, em Monte Gordo. Os condóminos desde bloco de apartamentos continuam a lutar para impedir a construção do hotel, do grupo Meliá, por violar os regulamentos do POOC.

Do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF), os moradores obtiveram uma decisão favorável, por meio de uma providência cautelar, para que fosse suspenso o processo de licenciamento na câmara. O processo transitou para o Tribunal Central Administrativo Sul, por via de um recurso apresentado pelos investidores. Entretanto, no dia 24 de Janeiro, deu entrada no TAF de Loulé, a acção-principal pedindo a nulidade da deliberação da desafectação da parcela e da respectiva venda.

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