Um português e um homem da Gronelândia entram num barbeiro

Um dia de trabalho de um barbeiro é uma única conversa que se prolonga de pessoa para pessoa, de tema em tema, de silêncio em silêncio – porque o silêncio, num mundo que hoje o teme e que por ter medo dele o abomina, sobrevive aqui com naturalidade.

Entrou já assim, muito sorridente, com um daqueles sorrisos que não são só de ponta dos lábios erguidas, são sorriso de cara completa. Entrou e arranjou cadeira em que se sentar enquanto esperava. Abanava a cabeça lentamente enquanto observava, da direita para a esquerda, para cima e para baixo, naquele movimento que parece ser atenta aprovação, mas é abandono feliz – sabe bem ter tempo para olhar, simplesmente.

Era fim-de-semana de Páscoa e o vetusto salão de barbeiro – “o corte ao masculino”, anuncia-se na rua sobre a grande vidraça que abre o olhar para o interior – tem clientes sentados nas cadeiras dispostas ao longo das paredes. Todos conhecem os dois barbeiros, que a casa é visita habitual, e é muito provável que se conheçam uns aos outros, mas esperam em silêncio, como é de rigor.

A conversa no barbeiro é feita pelo próprio e tem como interlocutor o dono da cabeça sobre o qual, naquele momento, ele estiver a praticar o seu ofício. Não é, porém, um diálogo fechado. Deve ser mantido em voz sonora o suficiente para que os clientes que aguardam ouçam e registem matéria informativa para, quando chegar a sua vez, possam dar o seu contributo ao rumo da conversa, pegando no ponto em que o anterior ocupante da cadeira a deixou ou cortando caminho em direcção a outra coisa qualquer do seu interesse.

Um dia de trabalho de um barbeiro é uma única conversa que se prolonga de pessoa para pessoa, de tema em tema, de silêncio em silêncio – porque o silêncio, num mundo que hoje o teme e que por ter medo dele o abomina, sobrevive aqui com naturalidade.

Há uma televisão no alto a dar notícias, fotografias antigas na parede. Tchk-tchk-tchk, “e então o campeonato, isto hoje é que vai ser?”, tchk-tchk-tchk, “como vai querer, senhor António? Pois claro, como tem sido sempre”, tchk-tchk-tchk, “é certo que sim, mas é preciso ver que o Governo isto e a oposição aquilo, e essa é que é uma grande verdade”. Chega então a vez dele. O homem sorridente, de cabelo preto escorrido, pele morena, olhos discretamente rasgados, levanta-se da cadeira em que esperava e senta-se na cadeira sólida em que lhe farão barba e cabelo. É a sua vez de continuar a conversa interminável.

Se alguém falava inglês, e pois sim, alguém falava. O homem queria imortalizar aquele momento, ver-se de lâmina rente ao rosto abrindo caminho na barba provisória de espuma branca. Foto tirada, explica ao barbeiro os pormenores do corte a operar. O barbeiro que aguardava, o mais velho, olha para o barbeiro mais novo. “É um corte normal.”

Lá continua a vida na sua atarefada calmaria, cadeiras encostadas às paredes todas ocupadas, silêncios pachorrentos entrecortados aqui e ali, “pode ser que ainda dê para o primeiro lugar”, tchk-tchk-tchk, “vamos lá ver, vamos lá ver”. A surpresa surge enquanto a barba desaparece sob o correr da navalha. “Sabe de onde venho? Greenland”. “Greenland?” Cruzam-se os olhares, uns intrigados, outros surpreendidos. “Greenland?” Gronelândia. Há então um turista da Gronelândia, a maior ilha do planeta, terra de que tão pouco se ouve falar, às voltas por Coimbra. Curioso, certamente, mas nada que altere o ritmo das coisas. O homem que veio de longe é um de nós e vive ao ritmo daquele sábado no barbeiro. O homem que veio de longe está em casa.

Dirá que o seu trabalho é tratar do bacalhau “que vocês comem cá” e, quando o diz, o rosto ilumina-se – é um abraço fraterno estendido. O bacalhau, claro, comenta-se, no século XVI já lá o iam pescar gentes de Aveiro e de Ílhavo. “Estou cá de férias uma semana com a minha mulher e as minhas filhas”, continua ele, mas já estamos longe, a pensar em Nanook, o filmado por Flaherty (que não vivia na Gronelândia, mas no Canadá), a pensar em trenós e nos lobos que foram cães do Jack London (mas isso era no Alasca). Adiante, que a geografia está toda trocada.

De onde lá longe (de Nuuk, a capital, 17 mil habitantes, diz a Wikipedia?) terá vindo o homem e a sua família para ajudar a continuar, numa cadeira de barbeiro, esta relação improvável forjada há séculos entre um país na ponta da Europa e uma região árctica na ponta do mundo? Há-de desaparecer sem que o saibamos. Soubemos das férias, da família, do bacalhau. E que havia habitantes da Gronelândia a passear na Baixa de Coimbra. Surpreendente, não?

Tchk-tchk-tchk, continua o barbeiro, trabalhando outra cabeça. “Da Gronelândia nunca tínhamos tido ninguém. Mas ainda a semana passada esteve cá um homem do Turquemenistão.” Conta que todos os dias curiosos param frente à grande vidraça, atraídos pelas cadeiras, pelas navalhas, pelas fotos. Quando entram, são forasteiros, quando saem, são da casa, são um elo mais na conversa do dia que, entre artesão capilar e cliente, continuará no dia seguinte.

“Isto está tudo a ser levado”, diz o barbeiro. Fala das ruas em volta, fala de casas, de habitantes, de turismo, de negócios como o seu. Fala de coisas que vê acontecer fora das suas portas, com nomes feios como especulação imobiliária e gentrificação. Isso é lá fora. Ele acredita que vai ficar ali para sempre. Faz bem em acreditar e queremos acreditar com ele. Afinal, onde mais se poderia contar uma história que começa assim: um português e um homem da Gronelândia entram num barbeiro.

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