Na mercearia da Rita cada produto tem uma história

Durante um ano, Rita Santos pesquisou e percorreu o país à procura dos melhores produtos e das pessoas mais apaixonadas pelo que fazem. Agora abriu, em Lisboa, a mercearia Comida Independente com “grandes produtos de pequenos produtores”.

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Espreitamos o Instagram da Comida Independente, a nova mercearia que abriu em Lisboa há um mês. Numa das fotos surge Rita Santos, a fundadora da loja, com duas queijeiras na Feira do Queijo da Serra da Estrela: “Quem chega a Oliveira do Hospital, venha de onde venha, atravessa muitos quilómetros de terra queimada. Morreram mais de 3000 ovelhas só neste concelho. As que sobreviveram estão a palha e, inevitavelmente, ração. Hoje, […] a Mariana Vaz Patto, da queijaria Dos Lobos, disse-me: ‘É preciso que as pessoas conheçam o impacto que isto teve’. Damos o nosso pequeno contributo. Obrigada Mariana e Patrícia. Força a todos os produtores de Queijo da Serra da Estrela.”

A foto e a respectiva legenda dizem muito do que é o espírito desta loja de toldo azul na Rua Cais do Tojo, perto da Avenida D. Carlos. Aqui cada produto tem uma história e Rita (e Inês e Olavo, que com ela trabalham) conhecem-na e gostam de a contar aos clientes. Até porque, depois de muitos anos a trabalhar em multinacionais, Rita decidiu lançar-se neste projecto por acreditar que fazia falta um espaço como este em Lisboa.

Mas antes de abrir portas passou um ano a estudar o que havia no país, a seleccionar os produtos que aqui tem, a perceber o que está por trás de cada um deles. Meteu-se no carro, levando algumas pistas e cada uma delas conduziu a muitas outras. Reaprendeu os ritmos da natureza (contava abrir com muitos cogumelos, mas a seca alterou-lhe os planos), percebeu que há alturas em que só terá tomate de conserva, mas sabe que “quando chegar a época do tomate vai ser uma alegria”.

Foi também um exercício de procurar responder a perguntas como “o que é português?” ou “o que é autêntico tem que ser antigo ou uma coisa recente pode também ser autêntica?”.

“O critério da escolha tem a ver com serem produtores apaixonados pelo que fazem e preocupados com a sustentabilidade na forma como trabalham”, explica. “Foi assim que chegámos à frase ‘Grandes produtos, pequenos produtores’. Os rótulos existentes pareceram-nos um bocado esgotados. O biológico, por exemplo, se percorrer metade do mundo para cá chegar pode ser saudável para quem o consome, mas tem uma pegada ecológica.”

E quem vai à Comida Independente procura exactamente isso, produtos com uma identidade. “Uma das coisas engraçadas deste projecto é que as pessoas querem conversar sobre comida. Essa relação tinha deixado de existir quando se passou a consumir em grandes superfícies, num comércio mais organizado. Mas agora começa a voltar essa vontade de conhecer a origem dos produtos”, garante Rita. Os clientes não só fazem perguntas como, muitas vezes, deixam também sugestões.

“Dão-nos dicas, dizem ‘Tem que ter aqui um enchido que é da minha terra’. Nós tomamos nota e agradecemos.” Colocaram até, na parede, um mapa de Portugal para que todos possam identificar os locais onde existem determinados produtos que gostariam de ver na loja. “Queremos que este seja um projecto participado.”

Percorremos a zona da entrada, o balcão do lado direito com um montra de enchidos e queijos (portugueses e alguns de outros países, mas igualmente de pequenos produtores). Rita detém-se para dar uma explicação: “Fizemos uma espécie de balizas, estabelecendo que 80% dos produtos seriam portugueses, 15% de regiões vizinhas e 5% de outras zonas do mundo. Isso ajuda-nos a manter a coerência mas, ao mesmo tempo, a ter coisas complementares às nossas.”

No caso dos queijos, a impressão com que partiu para as suas explorações pelo país foi a de que “os queijos portugueses eram uma imensa ovelha, com pouca diferença entre si”. Mas descobriu coisas diferentes, teve algumas boas surpresas e percebeu que aprofundando o diálogo com os produtores podia desenvolver um trabalho interessante.

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Rita e Olavo na garrafeira

“Com o Queijo Serra da Estrela, por exemplo, estamos a pedir para ver cinco momentos diferentes de cura, para que não seja só amanteigado, como o comemos aqui em Lisboa, nem só velho, como eles comem na serra. Achámos importante, depois dos incêndios e percebendo a dificuldade em ter queijo novo, promover essa apreciação de um queijo mais velho.”

Regras à medida das descobertas

Continuamos o nosso percurso, com Rita a apontar para os frigoríficos que ficam do nosso lado esquerdo, mostrando a Marmelada Branca de Odivelas (aproveita para nos explicar o truque de confecção que permite que fique branca), o delicioso Pudim Abade de Priscos de Miguel Oliveira, os iogurtes artesanais vindos de São Brás de Alportel, as manteigas dos Açores, a salicórnia, e, mais à frente, depois dos frescos (o fornecedor é o produtor biológico Vasco Correia, da Moita e os legumes chegam à sexta-feira), o frigorífico da carne, de raça barrosã. Há também pão, vindo da Maçussa, do produtor de queijos Adolfo Henriques.

Não é fácil ter raças autóctones portuguesas, como Rita tinha sonhado. “É uma dificuldade enorme encontrar carne em unidades que as pessoas possam facilmente levar para casa. No caso da Carne Barrosã, definimos os cortes já imaginando como a peça pode vir a ser confeccionada. Mas com as outras carnes é difícil, apesar de termos contactado produtores de ovelha churra, do porco malhado de Alcobaça, das cabras serpentinas. Ter aqui um capão de Freamunde, por exemplo, é um desafio.”

No outro corredor da loja, há produtos da Herdade do Freixo do Meio, chocolates da Feitoria do Cacao, bolachas, frutos secos, e uma variedade de outros produtos, além de aventais e algumas louças. No meio, junto à garrafeira, uma grande mesa onde nos sentamos a conversar com Rita, com um copo de vinho branco Ermita, do produtor Mateus Nicolau de Almeida (um trabalho em torno da mesma casta, Rabigato, mas proveniente de diferentes parcelas), e uma tábua de queijos, enchidos e delícias como a papada de porco da marca Feito no Zambujal ou o chouriço azedo de Vinhais.

É altura de falarmos dos vinhos, que, tal como os queijos, também incluem alguns estrangeiros. No mês de vida da Comida Independente houve já uma prova de vinhos e estão planeadas mais três. “Na primeira, apresentámos cinco vinhos, numa lógica de continentalidade”, explica Rita. “Os vinhos estrangeiros podem fazer sentido aqui em complemento com os portugueses, para mostrar como se relacionam, como é que, por exemplo, de um vinho mais atlântico passamos a um mais continental e, para conseguir essa maior continentalidade, se calhar precisamos de ir até Espanha ou França.”

As provas são descontraídas, não há regras. Aqui, as regras vão-se fazendo à medida dos interesses e das descobertas. “O que é bom num negócio destes é que podemos ir criando.” Afinal, este é uma casa de comida — e de espírito — independente.

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