As comissões científicas de fachada, Salvato Trigo e a PJ

Como é possível que o reitor Salvato Trigo, investigado pela PJ num crime de desvio de milhões, seja convidado a dar legitimidade ao congresso da associação sindical da própria PJ?

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Faltam 15 dias para sabermos se o reitor da Universidade Fernando Pessoa é absolvido ou condenado do crime de infidelidade — no caso, o desvio de três milhões de euros da universidade. Como o julgamento decorre há seis meses à porta fechada, não fazemos a mínima ideia do que ali se tem passado.

A decisão de julgar secretamente um crime de “colarinho branco” é tão rara que ainda ninguém se lembrou de outro caso parecido ou igual. Em Portugal, fecham-se as portas muitas vezes, mas quase sempre para julgamentos de crimes sexuais, tráfico de pessoas e processos que envolvem menores. Salvato Trigo parece ser a excepção excepcionalíssima dos últimos 40 anos de justiça em Portugal.

Perante isto, foi com perplexidade que li há dias que o reitor-arguido faz parte da comissão científica do 5.º Congresso de Investigação Criminal, organizado pela Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária (ASFIC/PJ).

Como é possível que Salvato Trigo, investigado pelos inspectores, subinspectores e agentes que a ASFIC/PJ representa, seja convidado a dar legitimidade à própria ASFIC/PJ?

A história é pior do que parece. Não ajuda aplicar o pensamento binário do preto e branco. É mais útil pesar pontos de vista contrastantes. Feito isso, no entanto, o resultado é tristemente previsível: Salvato Trigo não sai bem na fotografia.

A comissão científica do congresso — em Braga, na próxima semanatem 18 pessoas, todos nomes fortes da justiça e da academia portuguesa, de Adriano Moreira (que preside) a Cândido Agra, director da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Bastou-me falar com alguns dos ilustres membros da comissão para perceber quatro coisas.

A primeira é que a composição desta comissão científica é praticamente igual à do último congresso da ASFIC/PJ, em Faro, há três anos. Tomada a lista como uma rotina, ninguém foi verificar se algum dos membros tinha entretanto sido constituído arguido.

A segunda é que a ASFIC/PJ tem protocolos com várias universidades e automaticamente convida os líderes dessas instituições para a comissão. Por isso, tendo a Universidade Fernando Pessoa uma licenciatura em Criminologia e tendo assinado com a associação um protocolo de cooperação, o convite para Salvato Trigo seguiu com a mesma naturalidade com que seguiram os convites para os reitores das outras universidades.

A terceira é que esta comissão científica existe para atestar publicamente a seriedade académica do congresso mas, na prática, fá-lo de olhos fechados, acreditando que tudo correrá bem. A comissão não escolhe o tema (este ano é o terrorismo), não constrói o programa, não pensa nos oradores, não faz convites, não propõe moderadores, não arruma os painéis, não justifica as opções, não trata das actas nem dos possíveis livros a publicar. Como provavelmente em muitas outras comissões científicas de muitos congressos em Portugal, é uma fachada ilustre e simpática. Não é portanto diferente da comissão de honra do congresso, cuja longa lista começa com o primeiro-ministro António Costa e acaba com Rui Vieira Castro, reitor da Universidade do Minho.

E a quarta constatação é que ninguém da comissão científica parece sequer saber quem faz parte da comissão.

Se a comissão científica fosse levada a sério, alguém na ASFIC/PJ ter-se-ia apercebido de que o painel incluía um arguido. Há o respeito pela presunção da inocência, mas há também o bom senso de evitar conflitos de interesses flagrantes e má publicidade gratuita. Não era sequer preciso desconvidar a Universidade Fernando Pessoa. Bastava convidar especialistas em terrorismo — o tema do congresso — em vez de reitores.

E Salvato Trigo? Tem em sua defesa dois argumentos: a representação institucional faz parte das suas funções e, tratando-se de uma comissão científica — e não de honra —, não deixou de saber o que sabia antes de ser arguido, não perdeu qualidades científicas.

A nódoa cai quando fazemos uma coisa simples — a cronologia. As contas são fáceis de imaginar. O julgamento começou em Outubro; um mês ou dois antes disso houve a notificação formal; e durante meses antes disso houve o inquérito da PJ. Nem antes, nem durante, nem depois, nem agora lhe ocorreu pedir escusa.

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