“Uma ideia cujo tempo chegou”

Foi a vingança de António Sérgio. No próximo ano, quando se cumprirem 50 anos da sua morte, esperemos que o regime democrático o lembre.

Há debates de ideias que são como barcos cruzando-se na noite: cada um pressente o outro, mas não chegam a ver-se cara a cara. Faz esta semana 45 anos que Portugal teve um debate desses; cada um dos seus elementos é conhecido, mas raramente são postos lado a lado. Urge reconstruí-lo, pois foi um dos mais importantes da nossa história contemporânea.

Começamos no dia 6 de abril de 1973, há exatamente 45 anos, em Braga. O historiador Jorge Borges de Macedo, da Universidade de Lisboa onde era diretor do Centro de Estudos Históricos, apresenta na capital minhota num congresso sobre história de arte do século XVIII uma comunicação com o título “Estrangeirados: um conceito a rever”. Sob esta capa de aparente banalidade, o que estava em causa era uma ideia do país e uma ideia da história. E também uma disputa hierárquica, se quisermos chamar-lhe assim, dentro da elite cultural portuguesa.

O alvo de Borges de Macedo era o filósofo e pedagogo António Sérgio, falecido quatro anos antes e por muitos visto como o maior intelectual português do seu tempo — pelo menos no campo da oposição ao regime. Ora acontece que, a propósito da história do século XVIII português, António Sérgio tinha popularizado uma noção cuja importância superava em larga medida o mero debate académico: era o conceito de “estrangeirado”. Para António Sérgio, os maiores intelectuais do século XVIII português eram aqueles que, como o enciclopédico pedagogo Luís António Verney auto-exilado em Itália ou o médico judeo-português Ribeiro Sanches refugiado na corte da Rússia, tinham ido para o estrangeiro e a partir de uma visão “estrangeirada” tinham deixado escritas as reflexões que constituiriam as bases do Estado português moderno (a partir pelo menos de Pombal, outro meio-estrangeirado).

A primeira crítica de Jorge Borges de Macedo era historiográfica. Explicando que o termo “estrangeirado” não era usado no século XVIII no sentido que António Sérgio lhe dava, Borges de Macedo concluía que era “irreal a sua tipificação, quando visa dar-lhe um conjunto oportuno de ideias; inexistente, a sua função coordenadora; insuficiente, o papel cultural das personalidades, sem a determinação dos veículos da transferência e do modo como intervieram… deste modo, o conceito poderá ter algum significado na história social e cultural, porque vai inserir-se nos factores concretos que o aceitam como circunstância. Fora destas precauções continua a ser, tão-só, uma concepção de mero alcance doutrinário e actualista”. Mas essa crítica escondia uma crítica política que aparece em filigrana mais à frente. Borges de Macedo sugere, no fundo, que o que conta para a história cultural de uma nação é o que é criado dentro de fronteiras e não o que fazem os seus exilados. Era uma espécie de “só faz falta quem cá está” que tinha como destinatário não só Sérgio, mas toda a oposição intelectual exilada.

O que Borges de Macedo não sabia é que esse argumento que julgava historiograficamente vencedor já nascia historicamente derrotado por um outro argumento apresentado dois dias antes e uma centena de quilómetros mais a sul.

Em Aveiro, a 4 de abril de 1973, fez esta quarta também 45 anos, uma outra comunicação acabava de ser apresentada por Maria Emília Brederode Santos, mulher de um exilado político que assim conseguia fazer chegar as suas ideias ao Congresso da Oposição Democrática. Esse exilado era José Medeiros Ferreira e o texto que tinha enviado a Aveiro continha a famosa tese dos 3 “D” para Portugal: Democratizar, Desenvolver, Descolonizar (a que se acrescentava um S: socializar). Ao mesmo tempo que Borges de Macedo urgia os seus concidadãos a não prestarem atenção aos cantos de sereia dos intelectuais exilados, Medeiros Ferreira apresentava a mais estrangeirada das teses: a de que logo que fosse findo o ciclo imperial português, Portugal iria certamente iniciar um ciclo europeu. Borges de Macedo, acreditando representar as forças vivas culturais da nação, estava a falar para um regime que acabava. Maria Emília Brederode Santos, falando em nome de um estrangeirado, estava (talvez sem o conseguir imaginar) a anunciar as bases do futuro regime democrático português.

Foi, de certa forma, a vingança de António Sérgio. No próximo ano, quando se cumprirem 50 anos da sua morte, esperemos que o regime democrático o lembre.

Post-scriptum: este fim de semana, se assim o desejarem, estão todos convidados a virem à Conferência Ulisses 2018 “Democracia Europeia: uma ideia cujo tempo chegou?”, que o CCB me deu a oportunidade de comissariar, e que usa também como mote a frase de Victor Hugo “Há uma coisa mais forte que a força de todos os exércitos: uma ideia cujo tempo chegou”.

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