Aquilo que Winnie diz e faz para preencher o vazio

A Winnie de Beckett, mulher enterrada até à cintura, até ao pescoço, e rodeada de objectos do quotidiano estará no Teatro São Luiz de 12 a 22 de Abril. Cucha Carvalheiro será a Winnie destes Lindos Dias! encenados por Sandra Faleiro.

Foto
Estelle Valente

Na preparação para uma das primeiras apresentações de Happy Days (Oh les Beaux Jours na versão francesa), o dramaturgo irlandês Samuel Beckett seria apanhado a aproximar-se do monte de areia que aprisiona Winnie no centro do palco e, com o cenário provisoriamente desabitado de actores, horas antes das portas se abrirem, havia de deitar-se e rastejar pelo monte acima, silenciosamente, o seu corpo longo afundando-se e escorregando naquela superfície. Uma acção tão desnecessária de explicações e justificações, uma imagem belíssima, tão carregada de um profundo e dorido existencialismo quanto o próprio texto.

Sandra Faleiro (encenadora) e Cucha Carvalheiro (Winnie) não rastejam pelo cenário de Lindos Dias! – a tradução de João Paulo Esteves da Silva que será levada à cena no Teatro São Luiz, em Lisboa, de 12 a 22 de Abril. Mas confessam que a dureza do processo de construção do espectáculo as leva a sair do teatro, repetidas vezes, “de gatas”. “O Beckett é, de facto, genial – todos os dias descobrimos coisas novas na peça. É um lugar-comum, mas é verdade, porque tem milhares de camadas”, descreve Sandra Faleiro. “Só que é muito difícil porque não podemos relaxar minimamente, temos de estar sempre alerta. Estamos a jogar num limbo, a tentar um equilíbrio qualquer, nem muito naturalista, nem teatro do absurdo.”

Escrita por Beckett originalmente em inglês, e estreada em Nova Iorque em 1961, Happy Days enterra Winnie até à cintura (no segundo e derradeiro acto até ao pescoço), na areia e sob um sol inclemente, com mobilidade suficiente para alcançar uma mala de onde retira uma série de objectos quotidianos – batom, espelho, pasta e escova de dentes, mas também um revólver. Ao seu alcance encontra-se ainda um pequeno guarda-sol. Ao alcance da sua voz, o marido, Willie (Luís Madureira), homem muito dado à mudez, quase sempre surdo perante a verborreia da mulher, preferindo as palavras que eleva no jornal à sua frente (mesmo que pernas para o ar).

Happy Days / Lindos Dias! faz escala numa série de apeadeiros habituais na escrita de Beckett (tanto no teatro quanto no romance): a melancolia do envelhecimento, a luta pouco pacífica com a memória e as suas falhas, os assaltos constantes de remorsos e a cruz pesada dos sentimentos de culpa, a decadência física e psicológica, o apagamento progressivo da presença no mundo, a solidão atroz, a presença quase palpável da morte, a dureza da vida que se vive interiormente e não partilhável com os outros. Em Lindos Dias! a presença dos objectos quotidianos, como nota a encenadora, sente-se como “os rituais de cada um no dia-a-dia”. A sua repetição, por isso, é um traço de normalidade e sanidade, mas também a garantia de que os dias continuam a suceder-se, adquirindo quase a aura de gestos heróicos de sobrevivência.

“Um dia destes”, conta Cucha Carvalheiro, “acho que descobri uma das chaves da peça, quando a Winnie diz: ‘O que é que uma pessoa faz quando as palavras faltam? Escova e penteia o cabelo – caso ainda não o tenha feito – e arranja as unhas.’ E depois acaba afirmando ‘É tudo o que quero dizer.’ E o que fazemos nós todos os dias? Andamo-nos a entreter com coisas, a preencher um vazio, enquanto a vida passa, o tempo passa, e não chega a campainha para irmos dormir.”

Lindos Dias! tem início, precisamente, com o soar de uma campainha que desperta Winnie para o seu dia. É o tiro de partida, a ordem para poder começar o seu ritual de repetição e navegação pelas águas turbulentas da memória. Até à tal campainhada final – mesmo a pedir para ser entendida como a chegada da morte, à espera da qual Winnie e Willie se aperaltam e prepararam para receber com deferência e mordomias. Afinal, ninguém gosta de ir para o caixão mal-arranjado.

Beckett e Mário Viegas

A presente encenação de Sandra Faleiro nasceu de um convite à queima-roupa, lançado por Cucha Carvalheiro no intervalo das rodagens de uma telenovela para a qual fazia direcção de actores. Tal como acontecera três anos antes com Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams, o intenso trabalho em televisão de Cucha esgotara-a a um ponto tal que só conseguia pensar em pisar as tábuas do palco de um teatro enquanto actriz. E, mais uma vez, quis entregar-se nas mãos de Sandra Faleiro. O convite era entregue já quase totalmente preenchido: as duas nessas duas funções, o texto previamente seleccionado. “Era agora ou nunca”, diz Cucha, Winnie por estes dias.

Ao avançarem por esta morosa empresa de encontrar o tom justo de uma peça que patina se empurrada para o melodrama e escorrega se deixada cair para uma comédia que a torna grotesca, as duas concluíram, às tantas, que Beckett no passado de ambas estava fortemente ligado ao actor e encenador Mário Viegas. Viegas, enorme entusiasta da obra de Beckett, estreou Enquanto se Está à Espera de Godot (o título com que rebaptizou outro dos textos fundamentais do irlandês na sua Companhia Teatral do Chiado – CTC) na temporada 1993/94 com um elenco exclusivamente masculino. Acontece que Cucha Carvalheiro chegou a ensaiar o papel de Pozzo. “Era uma daquelas ideias malucas do Mário”, lembra. “Ele depois acabou por fazer só com homens porque entretanto zangámo-nos.” A vontade de entrar em palco com as palavras de Beckett tem andado a persegui-la desde então. Com Sandra Faleiro, foi Mário Viegas a desafiá-la para a primeira encenação da sua carreira, no quinto aniversário da CTC, na direcção da peça curta Come and Go.

Bem a propósito, é na Sala Mário Viegas, do São Luiz, que Lindos Dias! se apresentará e responderá a uma intuição de Cucha e de Sandra de que, ao recusarem qualquer hipótese de “exibição de virtuosismo” – este quase-monólogo pode transformar-se numa cruel armadilha para o ego da actriz a quem a peça seja entregue –, podiam encaminhar-se para um trabalho que explorasse a formação em clown comum às duas. “Beckett gostava muito de Buster Keaton, de Laurel & Hardy”, comenta Cucha Carvalheira, “e portanto queríamos encontrar isso também.”

Até porque, como frisa a encenadora, “há sempre uma grande tristeza na peça, não é preciso estarmos a mostrá-la e tentar fazê-la vir ao de cima”. Idealmente, na verdade, Sandra e Cucha gostariam que o público pudesse, se não arriscar uma gargalhada, sorrir perante algumas das palavras e das acções de Winnie. Nem que seja, tal como a própria Winnie, para espantar a ideia da morte.

Sugerir correcção
Comentar