Lisboa e a escravatura

A futura abordagem museológica da relação de Lisboa com a escravatura deve ser feita no âmbito e no espaço de um Museu dos Descobrimentos.

Terá Lisboa sido a grande capital do tráfico negreiro português? Ultimamente fazem-se muitas afirmações que apontam nesse sentido. Ainda há poucos dias se dizia, no Expresso, que “a partir de 1512, Lisboa, por decisão de D. Manuel I, deteve o monopólio do tráfico de escravos no império, conquistando o estatuto de maior entreposto mundial do comércio negreiro”. Esta e outras frases semelhantes podem induzir em erro, sobretudo quando, em simultâneo, nos é dito que Portugal foi responsável pelo envio de seis milhões de escravos para as Américas. Muitos leitores, ainda lembrados do chamado comércio triangular ensinado nas escolas, poderão supor que se carregavam mercadorias num navio em Lisboa, que se transportavam as ditas para a costa africana onde se trocavam por escravos que, depois, se levavam para as Américas, daí regressando o navio à metrópole com o porão cheio de tabaco, açúcar e outros produtos coloniais. E poderão, em conformidade, concluir que, desse modo, navio após navio, numa bem oleada engrenagem comercial, Lisboa teria arrancado seis milhões de escravos de África.

Ora, não foi bem assim. Lisboa teve um papel proeminente no tráfico de escravos no século XVI e primeira metade do XVII. Quem quiser conhecer esse papel tem à sua disposição, entre outros, dois excelentes livros de Arlindo Manuel Caldeira (Escravos e Traficantes no Império Português, 2013; e Escravos em Portugal, 2017). Importa, todavia, sublinhar que, na época em causa, o tráfico não tinha ainda assumido as grandes proporções que viria a ter em épocas posteriores. Para se ficar com uma ideia da ordem de grandezas bastará dizer que o tráfico feito nessa época terá sido apenas 10% do total do comércio negreiro português (e brasileiro, a partir de 1822). Ou seja, 90% desse comércio negreiro foi levado a cabo no período que vai de meados do século XVII a meados do século XIX, período esse em que muitas vezes se negociava directamente entre o Brasil e África, sem passar por Lisboa. Nessa época, e apesar do que frequentemente nos é dito ou sugerido, os principais pólos do negócio da escravatura foram, no âmbito do império, Luanda, Benguela, São Salvador da Bahia, o Rio de Janeiro e outros pontos de África e do Brasil, onde os negreiros actuavam autonomamente, à margem e por vezes, até, contra as directivas e os interesses de Lisboa, como aconteceu nomeadamente em Ajudá. Em vez de comércio triangular, o que muitas vezes havia era um comércio linear, ligando, por exemplo, a Bahia à então chamada Costa da Mina ou o Rio de Janeiro à actual Angola. Salvo situações específicas, como as das companhias monopolistas, Lisboa não conseguia meter muito prego nem muita estopa no assunto do tráfico da escravatura. Dito de outra forma, não desempenhou, no tráfico português, o papel que Liverpool, por exemplo, teve no tráfico inglês.

Isto não quer dizer que o papel que Lisboa efectivamente desempenhou não justifique um memorial como o que se pretende erigir na Ribeira da Naus (ou noutra zona, ainda por decidir). O memorial da escravatura parte de uma ideia justa, pois trata-se de homenagear os escravos que os negreiros portugueses, sob a autoridade formal da metrópole, levaram de África para outras partes do mundo. É pena que, nesse memorial, ao que consta, se pretenda associar essa justa homenagem à ideia militante e romântica, e sem qualquer suporte histórico, de que a abolição da escravidão e do tráfico de escravos em Portugal teria de algum modo resultado da resistência das pessoas que foram escravizadas. Mas esse é outro assunto que tratarei noutra ocasião. O que importa sublinhar é que o memorial é adequado, ainda que Lisboa não tenha sido a capital, muito menos a capital monopolista e hegemónica, do tráfico negreiro português como poderíamos ser levados a pensar por muito do que por aí se diz e se escreve.

E não tendo Lisboa tido o papel principal no comércio transatlântico de escravos, justificar-se-á, ainda assim, que para lá do projectado memorial se construa também um Museu da Escravatura na cidade? Sem ser um irredutível opositor dessa ideia, eu preferiria que uma futura abordagem museológica da relação de Lisboa com a escravatura se fizesse no âmbito e no espaço de um Museu dos Descobrimentos, ainda a construir. Prefiro essa opção à da construção de dois museus separados porque ela transmite a ideia de que os Descobrimentos — como geralmente acontece com os acontecimentos de grande fôlego, que envolvem muita gente e têm grande amplitude espacial e cronológica — tiveram aspectos positivos, construtivos e auspiciosos, e outros negativos, destrutivos e cruéis. Às vezes isso não fica claro para o grande público pois as facetas negativas são frequentemente dissociadas das positivas, e outras vezes essas facetas são contrapostas de uma forma muito artificial e nada inocente. Beatriz Dias, a presidente da Djass, a associação de afrodescendentes que propôs à Câmara Municipal de Lisboa o memorial da escravatura, quer fazer desse memorial, e nas suas próprias palavras, “um monumento contra a celebração das Descobertas”. Sim, leram bem: um monumento “contra”. Ou seja, um monumento que converta o celebratório em acusatório e que possa servir para censurar, condenar ou renegar os Descobrimentos. O mesmo relativamente a um eventual Museu da Escravatura, que Beatriz Dias não quer ver integrado num futuro Museu das Descobertas. A minha posição é diametralmente oposta. Uma das grandes obras de Vitorino Magalhães Godinho intitula-se Os Descobrimentos e a Economia Mundial. Nessa obra o autor dedicou um capítulo à escravatura, no âmbito mais amplo da expansão marítima portuguesa. Claro que Magalhães Godinho escreveu numa época em que a história da escravatura não estava tão trabalhada e tão aprofundada como está hoje. Na época em que ele escreveu, essa história também ainda não tinha sido apropriada, politizada e deformada por activistas da memória e outros agentes políticos, como hoje infelizmente acontece. De qualquer forma, a sua continua a ser, quanto a mim, que sou um historiador da escravatura, a abordagem correcta e bem proporcionada das coisas. O tráfico transatlântico de escravos e a escravidão nas plantações, minas e cidades coloniais foram trágicas decorrências dos Descobrimentos e deverão fazer parte integrante do tratamento museológico desses Descobrimentos.

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