Nascida com as feridas da vida e da morte

A estreia do filme Chavela é um bom pretexto para recordar a inigualável Chavela Vargas.

Pouco mais de um ano após a sua estreia mundial na 67.ª edição do Festival de Cinema de Berlim, em Fevereiro de 2017, chega esta quinta-feira às salas portuguesas o documentário Chavela, de Catherine Gund e Daresha Kyi, sobre a lendária cantora Chavela Vargas (1919-2012). E estreia precisamente a um ano das celebrações do centenário do seu nascimento – não no México, como muitos pensam, mas sim na Costa Rica, no dia 17 de Abril de 1919. Sim, porque Chavela, baptizada María Isabel Anita Carmen de Jesús Vargas Lizano na Basílica de Guadalupe, poderia ter sido costa-riquenha até morrer, não fosse a sua difícil infância, marcada pela rejeição e pela solidão: pais separados, entregue a uns tios e doente de poliomielite. Como não se identificava nem com as brincadeiras nem com os hábitos das meninas da sua idade, na escola poucas lhe falavam; e em casa escondiam-na, sempre que havia visitas. Por isso, logo que pôde, rumou ao norte, em busca de nova vida. E aos 17 anos chegou ao México.

Chavela ainda tentou ser “Isabel”, como ela própria diz no filme: “Primeiro apresentei-me vestida como uma mulher, de cabelo comprido, maquilhagem e saltos altos. Não resultou. Parecia um travesti.” Por isso, ajustou a aparência à revolta que já lhe ia na alma: trocou as saias por calças, cortou o cabelo bem mais curto, passou a usar um poncho vermelho e mergulhou no universo das canções “rancheras” com quanta alma tinha – e já era imensa. Chavela canta “como se já tivesse nascido com as feridas da vida e da morte”, dizem dela, a dada altura, no filme. E esta é uma definição perfeita. Quando conheceu o célebre cantor e compositor mexicano José Alfredo Jiménez, que a apadrinhou nos caminhos da música, passou a cantar as canções que ele escrevia “como se as vivesse”, com uma densidade inexcedível. Nas noites boémias, entre homens, era como eles. Se uma qualquer mulher ousasse, naqueles anos, o que ela ousava (vestir calças, beber e fumar sem freio) era apontada a dedo e marginalizada; ela não. E com esse seu gesto vingava, de uma vez, as rejeições da infância. Agora impunha-se, de porte altivo, aos que a olhavam estupefactos. Claro que isso teve um preço: o seu canto foi cuidadosamente circunscrito a bares e restaurantes, sendo-lhe vedados outros palcos. Os seus arroubos sentimentais também não ajudaram: numa das salas foi impedida de continuar, não porque se envolvera com o proprietário, mas porque lhe roubara a noiva. E assim foram os seus amores, muitos deles fugazes, em cuja lista figuraram Frida Kahlo, numa relação intensa que terminou abruptamente, actrizes e até mulheres de ministros. Em 1957, no casamento de Elizabeth Taylor com Michael Todd, onde cantou, Chavela diz ter acordado na manhã seguinte na cama de Ava Gardner. Ela conta este episódio num depoimento incluído no filme e fá-lo com uma naturalidade desarmante. Só muito tarde, no ano 2000, ela se referiu publicamente ao facto de ser lésbica, mas não o fez como “revelação” ou como quem declara pertencer a um “clube”. As opções sexuais? Cada um tem as suas, dizia. E Chavela nunca escondera as dela nem as exibia como bandeira.

O álcool levou-a a uma descida aos infernos. De onde acabou resgatada, primeiro por uma mulher com quem tivera uma relação muito forte (começou por ser sua advogada) e depois por Espanha, que por ela se apaixonou e a levou, finalmente, a grandes palcos. Pedro Almodóvar foi um dos maiores entusiastas desse renascimento, inteiramente merecido, de uma intérprete soberba das tais “feridas da vida e da morte.” Canções suas entraram em filmes, e ela própria surgiu em Frida, cantando La Llorona de uma forma absolutamente comovente. Mas só depois de pisar o palco do Olympia em Paris, esgotando a sala após uma odisseia impagável que teve Almodóvar por principal impulsionador, é que foi recebida sem entraves em grandes palcos na sua Costa Rica natal e também no México onde se fixou e naturalizou.

Cantou praticamente até ao final, lançando um último disco em Abril de 2012, a cantar Lorca. Tinha 93 anos e a morte já não tardava. Quando a pressentiu, depois de uma hospitalização em Espanha, quis voltar ao México. Ali, não deixou que a entubassem, quis enfrentar o fim com o mesmo garbo com que enfrentara a vida. Ao ouvi-la, uma e outra vez, tudo isto se confirma e pressente. As homenagens que lhe fizeram só sublinham a sua estatura na música. O filme recorda-a inteira: imperfeita e inigualável.

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