Evitavelmente sós

Se calhar a própria consciência também já foi extinta, a sangue frio, por quem a queria pendurada na sala de estar ou em tapetes junto à lareira.

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Matt Artz/Unsplash

 

Quando morreu o Sudan, o último rinoceronte-branco-do norte macho, no mês passado, muita gente se revoltou, mas já não havia nada a fazer. Quando agora li que as girafas estão a caminho de uma extinção silenciosa devido à caça furtiva, fiquei com um nó na garganta.

Lembro-me de estar na escola e aprender sobre o dodó. “Que ave engraçada, que pena que se extinguiu, lá atrás no século XVII”, pensei. Não ocorreu à minha pequena mente de criança que nós, humanos, não aprendemos com os erros e estamos a guiar as espécies que restam para o mesmo fim. Seria de esperar que, sabendo o que se passou com tantas espécies que foram extintas e a extensa lista de animais em vias do mesmo destino, nós como colectivo fizéssemos algo para parar de limpar o planeta de animais que julgámos ter por perto para sempre. A nossa espécie aprendeu muitas coisas, mas não o respeito.

Pergunto-me se algum dia uma criança me vai perguntar se eu alguma vez vi uma girafa — e eu vou chorar ao dizer que sim. Que cheguei a seguir atentamente o nascimento da cria da April, em 2017, e que nunca pensei que chegássemos ao ponto em que as girafas se tornassem no dodó do século XXI. As girafas, os rinocerontes-brancos-do-norte, e tantos mais. A criança olhará para mim com ar de quem não entende como fomos capazes de deixar que tal acontecesse, como eu pensei em relação ao dodó. Vai imaginar a girafa como um ser mitológico e vai pensar que “eram espécies engraçadas, que pena que se extinguiram há tão poucos anos”.

A lista cresce, as últimas esperanças para as espécies morrem e não há um grilo falante, uma censura numa escala tão gigantesca, que traga os caçadores para a razão. Se calhar a própria consciência também já foi extinta, a sangue frio, por quem a queria pendurada na sala de estar ou em tapetes junto à lareira.

Soa Roberto Carlos no meu ouvido, a cantar sobre as baleias e a culpa do ser humano, incrédulo de que não haja uma voz de consciência e um aperto no peito quando sabem as consequências das suas acções. Não é possível que os defensores dos animais sejam vistos como loucos quando há gente a ver animais mortos pelas suas armas, espécies em perigo que são transformadas em troféus e roupa. E essas pessoas não são vistas como loucas também, por pôr o luxo, a vaidade e o dinheiro acima de vidas, especialmente quando essas vidas pertenciam a animais que em breve poderão deixar de existir ou a animais que são mortos apenas pela sua pele. Como pode ser luxuoso usar uma parte de um cadáver?

Há quem diga que quem não estuda história está condenada a repeti-la e quem a estuda condenada a vê-la repetir-se, mas como é possível que tanta coisa continue a acontecer e se repita vezes sem conta? Não é por falta de aviso, com certeza! Estamos tão acomodados com os avanços das ciências que até nos damos ao luxo de os refutar, não tomar vacinas e ressuscitar o sarampo em Portugal.

Estamos tão acomodados que já vemos como inevitável a morte dos animais e a sua extinção. Vamos a circos bater palmas a leões treinados a chicotes, elefantes a choques — como os que foram vítima de um acidente em Espanha, em que pelo menos um morreu — e achamos os treinadores valentes por estarem a dominar um animal quebrado pela violência a agir por medo de sofrer mais.

Vamos a jardins zoológicos sem saber quais os que trabalham de forma positiva para proteger espécies e os que nem cuidam bem dos animais e damos dinheiro para ver animais confinados a espaços curtos numa vida deprimente de quem não conhece mais do que o que está uns metros além das grades da sua jaula.

Dizemos que somos amigos dos animais mas vemos hierarquias dentro deles. O nosso cão é mais importante do que um porco e quem mata cães para comer é cruel; no entanto, nós matamos porcos e há quem os tenha, devido à sua inteligência e sensibilidade, como animais de estimação.

Os outros animais, aqueles que vivem lá longe em África, na Ásia, que só conhecemos dos documentários de sábado de manhã e do jardim zoológico, não nos cruzam o pensamento até que, tal como o Sudan, morram e com eles morra a possibilidade de continuação da espécie.

“Eram animais engraçados, que pena que se extinguiram. Ora bem, o que é que vou fazer para o jantar?”

Surge ainda mais uma notícia sobre uma outra espécie que se extinguiu porque as atitudes não mudam, o desrespeito não muda, o cerco não aperta e os loucos de armas na mão fazem de chifres estatuetas para pôr em cima da lareira. O ciclo é vicioso e não há gente suficiente a mover-se para o quebrar. Ficaremos cada vez mais sós, evitavelmente, é decisão nossa como colectivo. Até as abelhas e o bacalhau estão a ficar raros. Pergunto-me quando é que nós deixaremos de ver a morte e a extinção como banais e abriremos os olhos para o valor daqueles que nos rodeiam. Talvez quando for tarde demais, como sempre.

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