Conflito da Ryanair passa da pista do aeroporto para o Parlamento

Deputados vão ouvir responsáveis da transportadora irlandesa, da Autoridade para as Condições de Trabalho, do regulador e do sindicato, que mantém de pé projecto de greve à escala europeia.

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Esta quarta-feira foi o último de três dias não consecutivos de greve Nelson Garrido

O número de voos da Ryanair cancelados ontem em Portugal não foi muito expressivo – terá rondado a dúzia, com a empresa a falar ao meio da tarde em oito voos – mas o terceiro dia de greve não consecutivo convocado pelo Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) não só serviu para manter vivo o tema das questões laborais na companhia aérea de baixo custo como o levou para o Parlamento.

Ontem, os deputados da Comissão de Economia, Inovação e Obras Públicas aprovaram por unanimidade o requerimento do Bloco de Esquerda para a audição, com carácter de urgência, dos representantes do conselho de administração da Ryanair em Portugal, do SNPVAC e da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT). Da mesma forma, deverão ser ouvidos os responsáveis da gestora dos aeroportos, a ANA, do regulador, a ANAC, e o próprio ministro do Trabalho, Vieira da Silva, até porque o PCP avançou com uma proposta semelhante.

“Esperamos que esta audição nos possa trazer esclarecimentos sobre o que se passa na Ryanair”, afirmou o deputado do Bloco de Esquerda, José Soeiro. Ao final da tarde, também a Comissão Parlamentar do Trabalho aprovou os requerimentos para audições.

O SNPVAC justificou a greve pelo facto de a empresa de aviação não aplicar a legislação nacional em questões como o gozo da licença de parentalidade e garantia de ordenado mínimo, exigindo também a retirada de processos disciplinares por motivo de baixas médicas ou vendas a bordo abaixo das metas da empresa.

Na terça-feira, véspera do último dia desta ronda de greves, a Ryanair afirmava que pretendia "operar o horário completo, se necessário com recurso a aeronaves e tripulação de cabine de outras bases fora de Portugal". E aqui entra a outra questão: a de saber se houve uma violação do direito à greve. A meio da tarde de ontem, a Ryanair não voltou a falar nesta matéria, mencionando apenas que a “grande maioria” dos “tripulantes de cabine em Portugal” estavam a trabalhar “dentro da normalidade”.

“A Ryanair fez um grande esforço durante este período para manter os voos e férias de Páscoa dos nossos clientes e respectivas famílias e, graças aos nossos tripulantes de cabine portugueses, que em grande parte ignoraram esta greve convocada por sindicatos de companhias aéreas concorrentes, estes esforços tiveram sucesso tanto na semana passada como hoje”, destacou a empresa em comunicado.

A referência à concorrência não é inédita, com a empresa a sublinhar que a presidente do SNPVAC é “empregada da TAP” e a pretender a formação de um comité português de tripulantes de cabine da Ryanair para as negociações, paralelo ao SNPVAC.

A 27 de Março, numa carta aos trabalhadores, a transportadora dizia que o que era “mais desapontante” na greve era o facto de esta estar a ser convocada “por tripulantes de cabine empregados dos nossos concorrentes TAP, Easyjet e SATA”.

Um processo "complexo"

O tema assumiu também ontem novos contornos políticos após as declarações do ministro do Trabalho, Vieira da Silva. No âmbito de uma audição regular do Parlamento, Vieira da Silva defendeu que a Ryanair não pode pôr em causa os “direitos imperativos da legislação do país” e que o Governo fará “todo o possível para o cumprimento da lei da República”. Avisou, no entanto, que se trata de um processo "complexo".

O responsável governamental foi questionado no Parlamento pelo PSD, pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP sobre a acção levada ontem a cabo pela ACT na Ryanair e sobre a aplicação da lei nacional aos tripulantes portugueses da companhia aérea irlandesa.

Os contratos assinados pela maioria dos trabalhadores portugueses da Ryanair, adiantou o ministro, foram assinados “ao abrigo de outro quadro legal”, como permite um regulamento europeu decorrente da Convenção de Roma. Mas o mesmo regulamento, acrescentou Vieira da Silva, “refere explicitamente que isso não pode pôr em causa os direitos imperativos da legislação do país onde o contrato poderia ser celebrado [neste caso Portugal]”. “Se, como poderá estar a acontecer, alguns desses direitos estiverem a ser postos em causa é um trabalho de investigação caso a caso. É isso que a ACT vai fazer cumprir, com todos os meios ao seu dispor”, garantiu.

O ministro antecipa desde já que este será um processo "exigente" e "complexo". "Estamos perante uma batalha que extravasa as fronteiras nacionais, porque está em causa o direito europeu", afirmou.

Já em relação à violação do direito à greve, denunciada pelos sindicatos, Vieira da Silva precisou que isso também será avaliado pela ACT na acção que está a levar a cabo nos três aeroportos do Continente.

A substituição de trabalhadores em greve por outros trabalhadores da empresa, precisou Vieira da Silva, tem de ser avaliada com base na grelha de distribuição de voos. “Só quando está escalado um determinado número de trabalhadores e eles são substituídos por outros é que é uma infracção grave”, disse, acrescentando que é um processo exigente. “Temos que ver em que condições terá acontecido essa substituição ilegítima”, afirmou ainda.

Nova greve pode ser europeia

O recurso a voluntários e a tripulação estrangeira por parte da Ryanair durante a greve foi ontem condenado pela Associação Europeia dos Tripulantes de Cabine (EurECCA). Em declarações à agência Lusa, o secretário-geral da EurECCA, Christoph Drescher, que esteve na sede do SNPVAC em Lisboa, declarou o "apoio total" de todas as tripulações europeias à iniciativa dos tripulantes de cabine das bases portuguesas.

Para este responsável, citado pela Lusa, a estratégia da Ryanair é "contraproducente", uma vez que os tripulantes têm o direito de organizar-se para lutar pelos seus direitos fundamentais.

Por parte do SNPVAC, este admite novas formas de lutas, e que envolvem uma greve à escala europeia. "Se a Ryanair não mudar” a atitude, afirmou à Lusa um dos seus responsáveis, Fernando Gandra, “a única alternativa que nós temos é trabalhar no sentido de pegar no exemplo português e replicá-lo numa greve à escala europeia”. Após o balanço da greve, o SNPVAC vai “convidar os sindicatos europeus para uma reunião onde será esse o único tema discutido", avançou, já que “os problemas são iguais e os tripulantes sofrem das mesmas condições de trabalho”.

O dirigente sindical, que falava à margem de uma conferência de imprensa, em Faro, onde estiveram presentes representantes do sindicato homólogo em Itália, afirmou, de acordo com a Lusa, existirem "vários exemplos de intimidação e de assédio moral" na empresa. 

Falando de uma greve pioneira, o responsável do SNPVAC afirmou que houve pessoas que quiseram recusar-se a efectuar voos fora de base para cobrir a greve e que foram ameaçados "com despedimentos, processos disciplinares e violações graves dos seus contratos de trabalho".

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