Quando dois actores mentem em línguas diferentes, o corpo diz a verdade

La Ronde é a primeira criação do Residências, projecto que quer levar a produção artística para fora dos grandes centros urbanos. A partir de Arthur Schnitzler, o francês Alexis Henon encena uma peça bilingue que está em palco no Auditório Municipal de Gondomar entre esta quarta-feira e sábado.

Foto
Em La Ronde, as personagens entram em cena aos pares Nelson Garrido

O espaço cénico está completamente despido e não há grandes artifícios nos figurinos, na iluminação ou na sonoplastia. O dispositivo teatral é reduzido, mas todos conhecemos esta história. Na rua ou num bar, diferentes casais navegam as diferentes fases de uma relação e os jogos de poder e sedução que antecedem ou sucedem um encontro. La Ronde, de Arthur Schnitzler, deu muito que falar no início do século XX ao tornar claras as interacções sexuais entre pessoas de diferentes classes sociais. 

Tal como no original, as personagens entram em cena aos pares, mas, ao contrário do que acontecia na já controversa obra, os casais podem ser heterossexuais ou homossexuais. Há um conjunto de personagens como a Prostituta e o Jovem Artista ou o Jovem Artista e o Marido em que o segundo elemento do par se repete no par seguinte, fazendo com que todas se cruzem ao longo da história – que foi, inclusive, objecto de adaptações cinematográficas como 360, filme de Fernando Meirelles protagonizado por Jude Law e Rachel Weisz.

A rotatividade e universalidade das relações humanas retratadas fizeram da peça uma escolha consensual para dar início ao Residências, projecto que visa promover a criação teatral fora das grandes cidades. “Esta convergência cultural que foge aos pólos centrais de Lisboa e Porto é fundamental para levar a cultura a todos”, começa por dizer Carlos Vieira.

O actor e director artístico encabeça o projecto a meias com João Ferreira, presidente da in skené – Companhia de Teatro (companhia residente do Auditório Municipal de Gondomar, onde La Ronde estará em cena entre quarta-feira e sábado, às 21h30). Depois de um período em Lyon a frequentar um curso dirigido por Alexis Henon, Carlos Vieira estabeleceu uma rede de contactos entre França e Portugal para criar um espaço de encontro artístico que unisse duas línguas, duas culturas e duas cidades na periferia – Gondomar, Porto e Feyzin, Lyon. “Gondomar não é uma cidade natural para a criação artística, por isso é interessante ter o desafio de estabelecer um novo fluxo cultural a partir deste ponto”, explica João Ferreira ao PÚBLICO.

Durante um mês, o encenador francês e a actriz francesa Sarah J. M’rad juntaram-se aos lisboetas Nuno Nolasco e Carlos Vieira e à gondomarense Ana Catarina Vigário para criar um espectáculo que se faz de breves diálogos em português, francês e até inglês, sem tradução para o público. “A dificuldade de comunicação que o público poderá sentir ao assistir à peça começou em nós”, confessa Carlos Vieira. “O projecto já pressupunha a criação entre pessoas do mesmo meio sem grande ligação, mas a língua foi um desafio que também tivemos de ultrapassar.”

A direcção do espectáculo foi feita em francês, sendo esta a língua nativa de apenas um dos quatro actores em palco. Havia, inclusive, actores que não falavam francês, por isso as três línguas foram utilizadas no decorrer dos ensaios. A barreira linguística na dinâmica criativa entre actores e actores foi-se dissipando com o passar o tempo. “Não é só a língua, é a cultura, a própria interpretação do texto que varia consoante o país”, problematiza João Ferreira. O presidente da in skené refere que “a dificuldade esteve presente todos os dias, mas foi deixando de ser uma barreira para passar a ser apenas mais um elemento da própria encenação”.

Ir além da língua e da palavra

La Ronde é um texto centenário, mas conduz-nos numa viagem intemporal pelas relações humanas. “Todos já vivemos experiências idênticas, por isso é fácil projectarmo-nos em relação ao que o texto sugere”, nota Alexis Henon. O encenador francês sublinha que é essa universalidade que permite desenrolar uma acção que deixa o diálogo para segundo plano. “A palavra não é muito elaborada, por isso esta peça confia na linguagem universal que é o teatro para se fazer compreender.” Esta opinião é partilhada por João Ferreira, que nota que, “a certa altura, a língua deixa de ser o factor crucial para a compreensão. É mais importante o intercâmbio de atenção entre o público e o que se passa em cena”.

Para Alexis Henon, trabalhar com actores que falam outras línguas tem sido “um processo apaixonante, porque de repente não é o sentido das palavras que importa”. “Entendo melhor o actor quando ele representa, se não entender a língua que fala, porque estou focado nos outros elementos da interpretação”, explica.

Parafraseando o encenador francês Louis Jouvet, que afirmava que “o actor é um mentiroso que diz a verdade”, Alexis Henon refere que o seu entendimento de uma interpretação vai além da palavra e confia em ferramentas como a colocação da voz e a linguagem corporal. “Quando dois actores não falam a mesma língua, o que me interessa é ver a verdade que existe no relacionamento entre as duas pessoas. Independentemente do que diz, interessa-me a verdade daquele corpo.”

Face a dois públicos que não comungam da mesma língua e cultura, os actores são obrigados a aumentar a expressividade não verbal, mas o desafio também se estende ao público. “O espectador tem de ser activo e ter uma atenção redobrada em relação ao que se passa em palco numa cena em que a língua usada não é a sua”, clarifica Carlos Vieira.

Plural de nome, o Residências quer funcionar como um laboratório criativo em contínua ebulição que permita a circulação de criadores e criações pelas periferias da Europa, preocupação partilhada pelas entidades que apoiam o projecto, como as câmaras municipais de Gondomar e Feyzin, o Consultado Geral de Portugal em Lyon e a Universidade do Porto. Depois de Gondomar, La Ronde segue para o Théâtre Le Rex, em Feyzin, onde será apresentado entre 25 e 28 de Abril.

Sugerir correcção
Comentar