November não é sinónimo de rain

Nesta “odisseia no espaço” amorosa, a velocidade demasiado constante, sem picos, acaba por abafar a prodigiosa voz da TDE.

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SiR, um dos nomes fortes da linha R&B da editora TDE

Muito temos falado por aqui da OVO, editora independente de Toronto co-fundada por Drake que tem evidenciado uma notável hegemonia transversal ao hip-hop, ao R&B e à synth-pop dançante contemporâneos, e a suposta rivalidade existente entre o canadiano e Kendrick Lamar prolonga-se para o mundo editorial. Uns valentes quilómetros abaixo, em Los Angeles, está a TDE, selo encabeçado por Lamar que tem num roster composto por rappers e vozes do universo R&B a sua firme aposta, ambas (TDE e OVO) irrompendo pelo mainstream e afirmando-se como as pontas de lança de um tempo em que o hip-hop é, estatisticamente, a música mais consumida em streaming no mundo. Menos heterogénea e com uma sensibilidade pop não tão marcada como a OVO, a TDE teve no álbum de SZA um dos grandes lançamentos de 2017, surgindo SiR como outro dos nomes fortes da linha R&B da editora, pela qual já havia lançado o EP Her & Her Too. Antes desta ligação, porém, o californiano havia despontado com Seven Sundays (2015), estupendo álbum (de uma solidez inusitada para uma estreia) a partir do qual se acaba, inevitavelmente, por fazer comparações com o seu restante trabalho.

A verdade é que o novo LP, embora pontuado por alguns momentos notáveis, continua a não igualar essa primeira obra, deixando uma irremediável sensação de insatisfação ou frustração no ouvinte. Um dos motivos reside, desde logo, no facto de este ser um álbum demasiado de beats, reflectindo esse contemporâneo fenómeno que é o de o R&B ser predominantemente produzido a partir de portáteis por produtores de hip-hop tout court (torná-lo mais melódico ou samplar mais instrumentos não o converte automaticamente em R&B ou em soul), ao contrário do que acontecia nos anos 90, em que os produtores de R&B eram, maioritariamente, isso mesmo, produtores de R&B, soul ou disco (Teddy Riley, Darkchild, Jimmy Jam & Terry Lewis, etc.). Se esta realidade, no que de democrático e inventivo implica, é, obviamente, de louvar, tem o inconveniente de redundar, muitas vezes, na construção de instrumentais rígidos e pouco adequados às nuances que o R&B — cantado, não apenas rappado — exige ao longo de uma canção (e, convenhamos, exigia-se um pouco mais a um produtor que sampla, sem toque particular algum, a Bumpy’s Lament dos Soul Mann & the Brothers em Dreaming of Me, já re-trabalhada ao pontapé no hip-hop, de Dr. Dre a Erykah Badu…).

É justamente o que aqui se sente, a predominância de canções excessivamente cadenciadas, em que a batida é referência demasiado central (porque determinante das restantes coordenadas), pelo caminho sublinhando a traço grosso a repetição do loop nuclear (com o risco de monotonia associado). Pedia-se, pelo contrário, menos batida, mais fluidez, enfim, uma languidez onde a magnífica voz de SiR — uma das mais virtuosas, juntamente com a de Anderson .Paak, da música americana actual, capaz de se aveludar e arranhar no instante imediatamente seguinte — se pudesse espraiar à vontade (como acontece, ainda que timidamente, em Never Home, mas já não, por exemplo, no beat “jdillaneano” de War, que parece um cruzamento samplado de Ahmad Jamal no piano, Mingus no baixo e Miles no trompete, com um hi-hat cirúrgico pelo meio) e, por exemplo, entrar em diálogo com um instrumento em particular. Ficarmo-nos por aqui seria, contudo, tremendamente injusto para um álbum — globalmente inspirado numa “odisseia no espaço” em que o HAL 9000 dá lugar a uma voz feminina (ainda computador ou já mulher?) — com uma canção do calibre de Something Foreign, piano pesaroso por cima de uma bateria exausta, e onde ao refrão maravilhoso de SiR se junta um Schoolboy Q (colega de editora) que já não víamos nesta forma há algum tempo (combinando versos erotizantes com uma disposição métrica mediante a qual explora, de modo sonoramente gingão, quatro diferentes terminações fonéticas da rima: “u”, “aive”, “aique”, “ou”).

Voz tão clássica quanto moderna, tão cool como lancinante, é de SiR que sai a charradíssima linha ‘Cause life is so much better when you live in slow motion em D’Evils (que dessacraliza o famoso provérbio da maçã: “My one spliff a day’ll keep the evil away”) ou o dueto lindíssimo com a inglesa Etta Bond em Something New. Num trabalho cujo título desde logo aponta para a ideia de tempo (duplamente: cronológico e meteorológico), Summer in November (SiR cita Marvin Gaye, mas o enleio, aqui, é o de um Al Green) é um dos raros momentos em que o álbum descola da temperatura predominantemente amena (não por acaso, o produtor aqui é Andre Harris, homem que trabalhou com a nata do R&B: Michael Jackson, Destiny Childs, Mary J Blige), ou seja, uma das poucas canções memoráveis de que Seven Sundays estava carregado. Vejamos o que a Primavera trará a SiR nos próximos tempos.

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