Drogas: do combate à participação da comunidade

PCP, BE e PAN apresentaram projectos de resolução sobre políticas de drogas. Deixo dois lamentos: que o bloco de direita tenha votado contra e que o PCP tenha insistido no uso conservador do “conceito” de “toxicodependência”.

A 23 de Março, no Parlamento português, PCP, BE e PAN apresentaram os seus projectos de resolução sobre políticas de drogas. Os três documentos abordavam o fenómeno sob diferentes ângulos: que tipo de dispositivo (estatal) queremos para a implementação das políticas das drogas, que estratégias prosseguir e qual a modalidade de financiamento mais adequada ao trabalho das equipas de rua (comunidade). Como é próprio da democracia existiram consensos e divergências na discussão. Por exemplo, o PCP, o BE e o PAN coincidiram na necessidade de restabelecer um organismo único e coerente (o tal dispositivo estatal), o que permitiria atenuar a desarticulação das respostas públicas na área das dependências, minimizando as assimetrias regionais, a desmotivação dos profissionais e a falta de recursos. Tudo isto consequências da fragmentação, em 2011, do anterior Instituto das Drogas e Toxicodependências (IDT).

Deixo dois lamentos: um, que o bloco de direita tenha votado contra, e dois, que o PCP tenha insistido no uso conservador, e de gosto antiquado, do “conceito” de “toxicodependência”. Também não faria mal nenhum abandonar a incompreensível designação de “políticas públicas de combate”. Bem ao sabor das convenções internacionais, o “combate” lembra o tom de campanha da famosa “Guerra às Drogas”. Guerra esta há muito perdida e que levou muito proibicionista a declinar suavemente a expressão, pois descobriu-se que tudo não passara de um equívoco semântico: o combate, afinal, dirigia-se às pessoas que usavam e usam drogas. Para um modelo político reconhecido internacionalmente e que se afirma herdeiro da melhor tradição humanista, é doloroso perceber que este tipo de discurso persiste no nosso Parlamento.

A boa noticia é que as três propostas de resolução foram aprovadas – mas não sem algumas nuances e contrariedades. O ponto comum às três recomendações e que apontava a um dispositivo do Estado mais integrado passou, com uma curiosa dicotomia esquerda/direita. Quer isto dizer que PS e PEV se juntaram aos partidos proponentes. No resto, nem tudo foi assim tão linear. O PAN viu a sua recomendação para “a reformulação das condições de atribuição de apoio financeiro a entidades promotoras de projectos de redução de riscos (RR)” aprovada. Mas aqui PCP e CDS-PP abstiveram-se. O PSD votou contra, vá-se lá saber porquê. Votou contra uma recomendação que precavia que as equipas ficassem “sem financiamento por períodos temporais indefinidos e os territórios de intervenção sujeitos a serviços mínimos e, em muitos casos, assegurados por técnicos em regime de voluntariado”!

Já o BE, que apresentou um projecto de resolução dividido em cinco pontos, conseguiu a única reprovação do dia. O feito ocorreu com o ponto 4, onde se refere a importância das salas de consumo assistido, das estratégias de drug checking (análise de substâncias) e de programas de redução de riscos nas prisões. Votaram contra: PSD, CDS-PP, PCP e PEV. Pergunta-se: onde pára a politica baseada na evidência científica? Diga-se que nada há de fracturante e muito menos de inovador neste ponto. Primeiro, porque as salas de consumo assistido e a testagem da composição de substâncias se encontram previstas no Dec.-Lei 183/2001. Faz agora 17 anos. Depois, porque a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Observatório Europeu das Drogas e Toxicodependências (OEDT) as reconhecem como boas práticas. Existem em vários países europeus e até temos serviços experimentais de drug checking em Portugal.

Quanto aos programas de trocas de seringas nas prisões, visitei uns quantos na Catalunha e em Berlim e só na vizinha Espanha registavam-se, em 2017, 47 programas em contexto prisional. Pergunta-se: ainda há quem acredite que não existe droga nas prisões portuguesas? Talvez não seja muito conveniente falar de políticas humanistas e baseadas em abordagens de saúde pública para a seguir nos opormos a práticas que sustentam estes mesmos princípios. Recusá-las é aumentar a probabilidade de ocorrência de infecções VIH/sida, hepatite C e tuberculose em pessoas que usam drogas em situação desprotegida (na rua ou nas prisões). Por fim, o ponto 5 da recomendação do BE. Defende “um maior envolvimento das organizações da sociedade civil e de consumidores na definição de políticas e programas”. Surpresa, uma vez mais: PSD, CDS-PP e PCP optaram pela abstenção. Porquê? Não se compreende. Será que os deputados destes partidos não têm uma opinião formada sobre o assunto ou ainda duvidam de que o princípio da participação cívica reforce a democracia?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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