As lições de moral e os espertos inúteis

Quando o resto falha, há sempre a hipótese de sugerir que os críticos não passam de gente que odeia o povo do governante em causa.

Do alto da sua sobranceria, o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu afirmou recusar “receber lições de moral” do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. “O exército mais ético do mundo não tem lições de moral a receber daquele que bombardeou civis indiscriminadamente durante anos”, disse ele, referindo-se às críticas que Erdogan fez ao exército israelita pelos ataques que provocaram dezasseis mortos na Faixa de Gaza nos últimos dias.

Sempre me irritou esta retórica dos governantes que declaram “não ter lições de moral a receber” de outros governantes cujos exércitos têm também culpas no cartório em matéria de direitos humanos. A verdade é que se levamos minimamente a sério a ideia de que há direitos humanos, todos temos lições a receber de todos. As lições em matérias de direitos humanos não devem reconhecer fronteiras nem cadeias hierárquicas.

A ideia de que “não há lições a receber” é apenas mais uma ferramenta no arsenal argumentativo dos autoritários e demagogos. Erdogan não hesitará em usá-la também para desviar a atenção dos crimes que comete na Síria contra os curdos. Mas há muitas outras formas de conseguir o mesmo efeito. O descaramento puro e simples é outra delas: ainda não dei por que Erdogan chame ao exército turco “o mais ético do mundo”, mas a operação com que bombardeia indiscriminadamente as posições curdas chama-se “ramo de oliveira”.

Outra reação comum está em acusar os críticos estrangeiros de se porem do lado dos terroristas. Nem a nossa Assembleia da República escapa. A mera aprovação de um voto de condenação à operação militar turca pela AR (sob proposta do BE, com votos favoráveis do PS, PEV, PAN, João Rebelo e Ilda Novo do CDS e Paula Teixeira da Cruz do PSD, e as inexplicáveis abstenções de PCP, PSD e CDS) mereceu do governo turco um comunicado no qual se declarou que “é lamentável que o parlamento português se tenha deixado transformar num instrumento de propaganda de uma organização terrorista”, numa referência ao movimento curdo PKK.

Quando o resto falha, há sempre a hipótese de sugerir que os críticos não passam de gente que odeia o povo do governante em causa. Para o governo de Erdogan, a Assembleia da República não está preocupada com os direitos humanos; está antes a “dar crédito a ações de desinformação anti-turca”. Já sabemos que para Netanyahu o antissemitismo de alguns dos seus aliados na Europa Central lhe toma muito menos tempo do que dar apoio às acusações de antissemitismo a quem critique as ações do Governo de Israel que ele chefia. E temos até a adição recente de um vocábulo à gama de mimos com que os demagogos autoritários fogem às suas responsabilidades: trata-se do epíteto favorito dos admiradores de Putin, que não perdem nunca mais de dois segundos até chamarem a qualquer crítico do presidente da Rússia “russofóbico” (na passada quinta-feira o advogado Domingos Lopes publicou um artigo intitulado “Pode um progressista cego ver?”, em resposta à minha crónica “Pode um progressista defender Putin?”: em quatorze parágrafos não consegue ter a frontalidade de mencionar o meu nome uma única vez, mas logo à entrada do texto fica ridiculamente sugerida uma minha suposta “histeria russófoba”).

O extraordinário não é, porém, que os autoritários e demagogos tenham interesse em usar todas estas formas de desviar as atenções. É que haja tanta gente letrada e bem informada disposta a repetir de graça as mesmas justificações. Diz-se que o leninismo inventou para esta gente a categoria de “idiotas úteis”. Não querendo repetir essa acusação (de que também sou alvo: por criticar Putin eu seria supostamente “idiota útil” de Trump, que no entanto tenho criticado muito mais vezes) acho que em vez de “idiotas úteis” estamos antes em face de “espertos inúteis”. São definitivamente espertos: sabem de geopolítica, de estratégia, de espionagem, de contra-informação, de teorias da conspiração, de tudo e mais alguma coisa. Mas se tudo isto lhes serve apenas para não conseguirem condenar uma violação de direitos humanos, de onde quer que ela venha, como uma violação de direitos humanos, são espertos bastante inúteis.

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