Os umbiguistas e o legado de Manuel Reis

Manuel Reis é difícil de situar. Não cabe numa prateleira, o que é uma chatice num país ainda arrumadinho, de fato e gravata, com dificuldade em fixar legados que muitas vezes não têm contornos definidos, que não são passíveis de serem engavetados em realidades pré-formatadas.

Parece que há por aí uma série de gente muito indignada afirmando que se exagerou na avaliação do legado de Manuel Reis para a vida colectiva portuguesa. E o que contestam eles? Fiquei curioso e fui investigar.

Contestam que sempre que na imprensa internacional mais credível, nos estudos de sociedade do Portugal pós-25 de Abril ou nas conversas mais informais se menciona a emergência de uma Lisboa ou de um Portugal mais cosmopolita o Lux-Frágil e o Frágil são nomeados como símbolos, prova de que habitam o imaginário de muita gente? Não.

Contestam que o valor alegórico desses lugares se pode aquilatar, por exemplo, pelo facto de em inúmeras localidades de Norte a Sul do país, quando se quer caracterizar o espaço de maior prestígio, se nomear o Lux-Frágil como termo de comparação? Também não.

Contestam que o Frágil, o restaurante Pap'Açorda e a Loja da Atalaia foram essenciais, nos anos 1980, na dinâmica de reconversão do Bairro Alto, antes votado ao abandono, naquele que foi o primeiro exemplo de bairro cultural de Lisboa e do país, mistura de lugares nocturnos e diurnos, de tradição e inovação, numa lógica em que as actividades culturais e o desenvolvimento dos territórios andam a par, segundo um padrão que nas últimas décadas foi adoptado em muitas cidades de todo o mundo (e Portugal não é excepção, como se constata do Cais do Sodré a Marvila, em Lisboa, passando pela Baixa do Porto ou pelo centro de Ponta Delgada na ilha de São Miguel, Açores)? Nada disso. 

Contestam que, dentro da mesma lógica de reconversão de zonas anteriormente abandonadas, foi isso que Manuel Reis acabou por fazer há 20 anos no Cais da Pedra, a Santa Apolónia, não só através do Lux-Frágil, mas com uma série de equipamentos (Loja da Atalaia, Bica do Sapato, Delidelux, Nord ou Flur), com lojas de design e de discos, mercearias e restauração a mobilizarem toda essa área? Temo que não. 

Contestam que Manuel Reis, umas vezes de forma directa, outras de forma indirecta, tenha sido impulsionador de novos criadores, a maior parte dos quais acompanhou numa altura em que ainda eram pouco conhecidos, de designers a arquitectos a gente do teatro, da moda ou da música, tocando as mais diversas gerações e orientações, de Pedro Cabrita Reis a Joana Vasconcelos, de Vhils aos Buraka Som Sistema, de Filipe Faísca ao Teatro Praga, a maior parte deles referências que saltaram as fronteiras do país? Nem por sombras.

Contestam que o Frágil e o Lux-Frágil foram essenciais na afirmação da cultura de música de dança (sendo o último hoje uma referência globalizada), numa altura em que nem sequer se sabia bem o que isso era, com sessões DJ regulares, ao mesmo tempo que ali se apostou noutras tendências no momento exacto antes de estas eclodirem, através de concertos de Antony, LCD Soundsystem, Herbert, Cinematic Orchestra e tantos outros, numa lógica actualmente seguida por inúmeros espaços pelo país fora? Não me parece de todo.

Contestam que os espaços de Manuel Reis eram lugares de liberdade, de questionamento das normas sociais vigentes e de aceitação da diferença, o que pode ser avaliado pelos inúmeros testemunhos anónimos de pessoas das mais diversas origens e gerações que se disseram nos últimos dias marcadas na formação do seu gosto e no alargar do seu olhar sobre o mundo? Nada disso.

Contestam o espectro diversificado das evocações, sinal dos muitos universos que coexistiam no Frágil, para já não dizer do Lux-Frágil, unidos pela procura do novo, do experimental, de novas linguagens, de outros modelos de pensamento e até de renovadas concepções de cidadania, numa procura da alternativa aos hábitos cinzentos a que o país parece por vezes votado? Que diabo, não.

É verdade que algumas evocações saídas na imprensa se focaram em demasia nos anos 1980, sintoma de que essa foi uma época fundadora, mas também não vale a pena sacralizá-la e muito menos olhá-la de forma quase mística? Sim. Mas Manuel Reis não tem culpa. Ele não estava nem aí, porque para ele o que contava era o presente. E tinha consciência desse salto geracional. É por isso que fazia festas de aniversário ou festas temáticas de grande impacto no Lux-Frágil – única forma de fazer sair de casa os que tinham nostalgia do Frágil – mas sem nunca se acomodar, sempre rodeado de gente nova com quem partilhava ideias.

Mas então, se não contestam nada disso, qual é o seu grande argumento para afirmarem que Manuel Reis não tinha projecção local, quanto mais nacional? Parece que o esmagador, definitivo e demolidor argumento é a acusação de que o Frágil há cerca de 40 anos era um reduto elitista porque terão sido barrados à porta pelo porteiro de serviço. Não tenho paciência para elitismos, mas menos ainda para umbiguismos.

O umbiguismo é a incapacidade de ler o mundo a não ser a partir das experiências subjectivas do próprio. A partir do momento em que um umbiguista é barrado à porta, sendo-lhe retirada a hipótese de cumprir um desejo, toda a sua avaliação do mundo é feita a partir desse acontecimento. Acredito que para muitas pessoas o Frágil dos anos 1980 pudesse parecer exclusivo, mas acima de tudo era um espaço de diferenças compatíveis, onde se criava essa fantasia de se estar entre semelhantes. Mas mesmo que assim não fosse, é difícil de perceber que o Frágil não era a porta, mas sim o que era projectado para fora dela?

As pessoas que, quase 40 anos depois, ainda falam de terem sido barradas à porta como se tivesse sido hoje, ou aqueles que fazem questão de dizer que nunca foram ao Frágil ou ao Lux não percebem que ao fazerem-no só estão a assumir que esses lugares não lhes são indiferentes, que são marcadores de identidades, representando qualquer coisa a que alguns queriam pertencer e outros não, e dessa forma reforçando o seu valor icónico?

Mas a grande questão nem é essa. A questão é que Manuel Reis é difícil de situar. Não cabe numa prateleira, o que é uma chatice num país ainda arrumadinho, de fato e gravata, com dificuldade em fixar legados que muitas vezes não têm contornos definidos, que não são passíveis de serem engavetados em realidades pré-formatadas (sejam da política, da economia, da cultura, da sociedade ou dos comportamentos, sendo que Manuel Reis atravessava isso tudo) e cuja memória é difusa: não se estuda, não se avalia e não se fixa tanta coisa incrível neste país que vai muito para lá da realidade tangível mais previsível. A herança de Manuel Reis atravessa diversos espectros, alguns ainda não firmados enquanto lugar de memória, mas isso não significa que não possam ser corporizados num indivíduo remetendo para mudanças colectivas.

Ao longo dos anos Manuel Reis sempre se recusou a falar de si e da sua actividade, de alguma forma abrindo espaço para que, agora, sejam muitos outros a fazerem-no. Nada de mal nisso. O que ele idealizou não tem de ser consensual. Seria aliás um sinal de falhanço se o fosse. Mas convém não se falar de cátedra sobre o que se desconhece. O mínimo é mostrar curiosidade em saber e ir muito além do umbigo.

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