Estátua de “rainha” negra garante que a memória do colonialismo se mantém viva na Dinamarca

A inauguração de I Am Queen Mary, em Copenhaga, marca o encerramento das celebrações do centenário da venda das Ilhas Virgens da Dinamarca aos Estados Unidos.

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A escultura ainda durante o seu processo de construção DR

Sentada descalça numa cadeira, uma mulher olha em frente. Segura firmemente uma tocha na mão esquerda. Na direita levanta um cutelo, utensílio utilizado para cortar cana-de-açúcar. A estátua, inaugurada este sábado, tem sete metros de altura e foi construída à imagem de uma mulher negra que marcou a história do país. Mary Thomas, que inspirou e dá nome à obra, foi uma das três mulheres que em 1878 lideraram a revolta dos escravos contra o colonialismo nas Ilhas Virgens Americanas, então ocupadas pela Dinamarca.

I Am Queen Mary (Sou a rainha Mary, numa tradução livre) lembra o dia em que foram queimadas 50 plantações e grande parte da cidade de Frederiksted, em St. Croix, nas Ilhas Virgens, naquela que é considerada a maior revolta da história colonial da Dinamarca. A sua inauguração marca o fim das comemorações do 100.º aniversário da venda do território aos Estados Unidos, concretizada em Março de 1917, pelo valor de 25 milhões de dólares (aproximadamente 20 milhões de euros).

A escolha das criadoras também não foi deixada ao acaso e é, em si, simbólica. A obra de arte é resultado de uma colaboração entre duas mulheres negras, a dinamarquesa Jeannette Ehlers e La Vaughn Belle, natural das Ilhas Virgens. Num país onde a maioria das estátuas públicas são dedicadas a homens caucasianos, esta nova peça — que figura no Armazém dinamarquês das Índias Ocidentais, em Copenhaga — “quer desafiar a memória colectiva” e lembrar o passado, explica a artista La Vaughn Belle.

Apesar de a Dinamarca ter proibido o tráfico transatlântico de escravos em 1792 a exploração de escravos continuou a ser uma realidade até 1848. “Queriam encher todos os stocks primeiro e garantir que ainda tinham escravos suficientes para explorar as plantações”, explica Niels Brimnes, professor na Universidade de Aarhus e especialista em colonialismo dinamarquês ouvido pelo New York Times.

Depois da revolta, Mary Thomas, e duas outras “rainhas”, Queen Agnes e Queen Matilda, "eleitas" pelos trabalhadores que representavam, foram presas numa prisão só para mulheres na capital da Dinamarca. A estátua que agora a homenageia está a menos de dois quilómetros do cárcere a que foi condenada perpetuamente.

“É preciso uma estátua destas para que se lute contra o esquecimento. É preciso um monumento destes para lutar contra o silêncio, a negligência, a repressão e o ódio”, considera Henrik Holm, curador da Galeria Nacional de Arte, citado no site do projecto.

“Nunca uma estátua destas foi erguida em solo dinamarquês”, sublinha Tim Whyte, representante da organização ActionAid. “Todos os dias, activistas de direitos humanos como a Queen Mary assumem riscos tremendos para conquistar a mudança necessária às pessoas que vivem oprimidas e na pobreza, por todo o mundo”, lembra.

Os símbolos que carrega nas mãos representam a resistência das colónias e a luta pela liberdade. O gesto é inspirado numa fotografia de Huey P. Newton, fundador e líder dos Panteras Negras, fundado nos anos 1960 nos EUA. Uma das artistas, La Vaughn Belle, partilhou a sua inspiração na sua conta de Instagram, onde mostra ainda o cartaz do filme da Marvel Black Panther, que traz para o grande ecrã o primeiro super-herói negro.

A base da escultura também não foi descurada. A escultura assenta em pedras corais transportadas por escravos e agora recuperadas de antigas estruturas erguidas no território das Ilhas Virgens.

Esta não é ainda a estátua final, mas trata-se de uma obra temporária. A obra permanente que a irá substituir será em bronze.

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