A Rússia e nós

Portugal é hoje um país com prestígio na União Europeia e pode por isso ter um papel de relevo no debate que se abre sobre o futuro da União.

A posição portuguesa de não acompanhar, em nome da prudência, a resposta concertada de vários Estados europeus ao ataque químico a Sergei e Yulia Skripal abriu um debate – sem precedente desde a guerra do Iraque, em 2003 – sobre a política externa portuguesa, que só pode ser bem-vindo. Infelizmente, a discussão centrou-se mais no chamado mistério da posição portuguesa do que no debate da política russa da União Europeia.

É no equilíbrio entre a política de sanções, posta em prática desde 2014, no seguimento da anexação da Crimeia, e o diálogo, de que são exemplo os acordos de Minsk, que se tem vindo a construir o que poderia ser uma posição europeia comum face à Rússia, fragilizada pelas divisões entre os Estados membros.

No presente debate, não me parece relevante enfatizar as relações bilaterais de Portugal com a Rússia – desde logo, a capacidade portuguesa para pesar na resolução da questão russa só é credível no quadro europeu. Mas não se pode pensar que Portugal, neste extremo da Europa plantado, não tem nada a dizer sobre as relações com a Rússia e que devia alinhar automaticamente com os nossos aliados ou manter-se num tímido isolamento.

Do alinhamento acrítico tivemos o penoso exemplo da cimeira dos Açores, que lançou a criminosa guerra do Iraque em 2003. Do isolacionismo, a herança ainda é mais pesada, pois foi esta política que nos deixou de fora das transformações políticas do pós-Segunda Guerra, contribuindo para a sobrevivência da ditadura salazarista

O isolacionismo não serviu, nem serve, os interesses portugueses, e o seu triunfo teria como corolário o afastamento de Portugal da procura da resolução do problema mais grave que afeta a Europa e a sua segurança: as relações com a Rússia.

Putin afirmou o seu poder com um discurso nacionalista e a sua popularidade resulta da convicção de muitos russos de que voltou a afirmar a Rússia como um grande potência.

O discurso nacionalista, de uma Rússia eterna, cercada, que afirma o seu poder contra um Ocidente agressivo, fez de Putin um herói para os nacionalistas sobretudo depois da crise Ucraniana de 2014.

A corrente populista nacionalista, que tem tido sucesso um pouco por toda a Europa, encontra em Putin um aliado ativo (basta ver o apoio que deu a Marine Le Pen). É evidente que os sucessos e insucessos eleitorais das correntes nacionalistas não são obra de Putin. O populismo cresce por razões que são próprias à crise das democracias, mas esse apoio é sinal da convergência de interesses entre as diferentes correntes populistas e o modelo de sociedade que querem construir, a democracia iliberal que defende, citando o exemplo russo, o dirigente húngaro Viktor Orbán – sistema com eleições mais ou menos livres, mas sem garantias de respeito pelos direitos fundamentais e de normal funcionamento do Estado de direito.

Se tivermos em consideração que os nacionalistas estão no poder em vários países europeus, que possivelmente irão estar no governo da Itália, podemos facilmente concluir que a questão russa deixou de ser vista apenas como uma questão de política internacional, mas passou a fazer parte do futuro da democracia.

Parece prudente dizer a Putin que nem tudo é permitido, que há regras de comportamento internacional que devem ser respeitadas, sobretudo depois da anexação da Crimeia e dos brutais bombardeamentos contra a população civil nas cidades sírias. Corremos o risco de voltar ao tempo em que o uso da força contra civis, para obrigar o inimigo a capitular, era tolerado, mesmo quando a força era usada por potências democráticas – recordemos Dresden e Hiroshima.

A razão primeira para a União Europeia dar uma resposta firme e unida ao aventureirismo de Putin é a defesa das regras de comportamento internacional que permitem as relações pacíficas entre os Estados. O ataque em Salisbury é o último de uma série de atentados contra cidadãos russos no Reino Unido, que se tornou num centro financeiro  da oligarquia russa.

A ordem internacional começou por ser profundamente abalada pela intervenção americana no Iraque e está hoje a ser desconstruída por Donald Trump. As enormes responsabilidades dos Estados Unidos no regresso à lei da selva nas relações internacionais, porém, não ilibam Putin.

A expulsão de diplomatas é um gesto político forte mas limitado, são necessárias  medidas sérias, doa a quem doer, para tornar transparente as transações financeiras russas na Europa. O impacto das expulsões resulta do grau de unidade alcançado, o que certamente não escapa a Putin. Se Donald Trump se sentiu forçado a tomar esta medida, apesar da sua patente simpatia por Putin e do seu desrespeito pelas regras internacionais, tanto melhor para a Europa.

Os crimes cometidos no Reino Unido levantam também a questão dos direitos humanos e a necessidade de os integrar na agenda da política externa, como o fez desde os anos 70 o Presidente Carter, e como fez Portugal, de forma eficaz, na defesa de Timor Leste. Os direitos humanos ainda não são uma componente importante da política externa portuguesa, como se vê nas dificuldades, comuns a todas as antigas potências coloniais, em abordar o tema com Angola ou na forma como o General Sissi foi recebido em Portugal.

O ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu a necessidade de diálogo com a Rússia, e esta deve certamente ser a outra componente de uma política europeia coerente e eficaz. Temos todo o interesse em evitar uma nova bipolaridade europeia e em construir uma relação estável com a Rússia. Putin pode, por razões de sobrevivência do regime, estar interessado numa nova guerra fria, que conforte a imagem de grande potência da Rússia, mas nós, europeus, não devíamos estar.

À luz da enorme desconfiança da opinião pública internacional, depois da desinformação americana sobre o Iraque, é importante valorizar e procurar acelerar o inquérito sobre o veneno usado contra Skripal e a sua filha sob a égide da Organização para a Proibição de Armas Químicas.

A utopia de uma casa comum europeia de paz, de Lisboa a Vladivostok, cara a Gorbachev, deve ser um horizonte da União Europeia. Para a sua concretização não basta conter a política belicista de Putin, é preciso agarrar na sua afirmação constante de quem não respeita a ordem internacional é o Ocidente e propor a discussão sobre uma nova ordem europeia, baseada na consciência de que se os europeus têm legítimos interesses de segurança, também os russos os têm, o que implica a discussão dos limites do alargamento da NATO. O diálogo com a Rússia também é importante para a sobrevivência do acordo nuclear com o Irão, com Moscovo mais próximo das posições europeias do que Washington.

Portugal é hoje um país com prestígio na União Europeia e pode por isso ter um papel de relevo no debate que se abre sobre o futuro da União. Assumir esse papel, no entanto, obriga o país a assumir todas as dimensões do seu empenho europeu, tanto as económicas e financeiras como as relativas à política e à segurança.

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