O arquitecto e urbanista que gostava de construir lugares

Obra de Manuel Marques de Aguiar revisitada numa exposição na Biblioteca de Serralves até 17 de Junho. Desenhou a Escola Francesa do Porto e coordenou o plano de reconstrução de Angra do Heroísmo após o terramoto de 1980.

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Manuel Marques de Aguiar, 1927-2015. Construir lugares é o título da exposição documental Nelson Garrido
Manuel Marques de Aguiar
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Manuel Marques de Aguiar DR
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Manuel Marques de Aguiar, 1927-2015. Construir lugares é o título da exposição documental Nelson Garrido
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Há várias lupas no mezanino da Biblioteca do Museu de Serralves que permitem ver mais de perto os testemunhos da obra do arquitecto e urbanista Nelson Garrido
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Manuel Marques de Aguiar, 1927-2015. Construir lugares é o título da exposição documental Nelson Garrido
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Manuel Marques de Aguiar, 1927-2015. Construir lugares é o título da exposição documental Nelson Garrido

Há várias lupas no mezanino da Biblioteca do Museu de Serralves que permitem ver mais de perto os testemunhos da obra de um arquitecto e urbanista que, apesar de pouco conhecido, deixou rasto na cidade do Porto, mas também em Espinho e noutras localidades do Norte do país, além de Angra do Heroísmo, nos Açores.

Manuel Marques de Aguiar é essa personagem, cujo início de carreira esteve associado à vinda para o Porto do arquitecto e urbanista francês Robert Auzelle (1913-1983), responsável, no início da década de 60, por um Plano Director Municipal (PDM) que prometia mudar de forma radical a fisionomia e a estrutura viária da Baixa da cidade.

Manuel Marques de Aguiar, 1927-2015. Construir lugares é o título da exposição documental inaugurada a 8 de Março, e que vai ficar patente em Serralves até 17 de Junho.

A curadora é a filha do homenageado, Marta Aguiar, também arquitecta, que explicou ao PÚBLICO que a exposição começou a ser pensada em 2013, quando, com uma pequena mostra de desenhos do arquitecto, se assinalou o cinquentenário da Escola Francesa do Porto, precisamente uma das obras de referência na carteira de Manuel Marques de Aguiar (que nesse projecto, desenvolvido entre 1956 e 1961, trabalhou em colaboração com Luiz Cunha e Carlos Carvalho Dias).

“Foi nessa altura que o arquitecto Siza, ao ver os desenhos do meu pai, nos desafiou para organizarmos uma exposição mais desenvolvida”, recorda Marta Aguiar, que de seguida se ocupou em reunir a vasta informação documental e biográfica que constitui a presente mostra.

Além do espólio na posse da família – e cujo destino não está ainda decidido –, a arquitecta-curadora recorreu aos vários arquivos municipais das terras onde o pai trabalhou, mas também ao Instituto de Urbanismo de Paris, onde, em 1953, Marques de Aguiar defendeu a sua tese, precisamente orientada por Robert Auzelle.

Seis núcleos

É assim que a exposição se desenvolve por seis núcleos, documentando – em desenhos, planos, projectos, pareceres técnicos e fotografias (inúmeras fotografias em pequenas provas de contacto da época, as tais que precisam da ajuda da lupa para se verem melhor), mas também vídeos com depoimentos de antigos colaboradores – outros tantos momentos fortes da vida e obra do urbanista formado na Escola de Belas Artes do Porto.

O percurso abre com uma reprodução em grande formato de um desenho da Ponte da Arrábida em construção – que viria a ser inaugurada em 1963, um ano após a aprovação do PDM elaborado por Robert Auzelle. Neste e noutros documentos que pontuam a exposição se vê a mão de desenhador de Marques de Aguiar, que “pertence a uma geração de arquitectos do Porto para quem o desenho constitui uma ferramenta privilegiada de pensamento”, escreve Marta Aguiar no programa que acompanha a mostra.

“Marques de Aguiar era um desenhador primoroso, sempre com uma caneta muito fina, e ao primeiro traço, uma coisa fora do comum”, lembra ao PÚBLICO Diogo Alpendurada, engenheiro que com ele colaborou, nos anos 80-90, no projecto de requalificação urbana do percurso da marginal da Foz do Douro, entre a Cantareira e o Castelo do Queijo.

Os trabalhos desenvolvidos por Marques de Aguiar nas orlas marítimas do Porto e também de Matosinhos formam, de resto, outro dos capítulos da exposição. No seu depoimento, Álvaro Siza recorda o primeiro contacto que teve com o urbanista a pretexto do projecto de requalificação da marginal de Leça da Palmeira, que iria dar ao então jovem arquitecto de Matosinhos a oportunidade de desenhar a Casa de Chá da Boa Nova, e depois a Piscina das Marés – Marques de Aguiar integrou o júri que escolheu o projecto de Siza para a primeira edificação.

“Este foi um período muito interessante. Eu estava no começo, não tinha experiência de trabalho com aquela escala”, acrescenta Siza, recordando o trabalho que Marques de Aguiar então desenvolveu, com Ilídio Araújo e Luís Botelho Dias, para o Plano Parcial de Leça da Palmeira, que acabaria retalhado pela decisão irreversível do Governo de Salazar de aí instalar a refinaria da Sacor (actual Galp).

“Muito aprendi com ele, nesse primeiro contacto com o desenho do território. Guardo na memória esses dias de aprendizagem e de convívio marcado pelo seu inexcedível trato e paciente sabedoria”, disse ainda o autor da Boa Nova.

Depois do terramoto

Nesta escala de pensar e organizar o território – de “construir lugares que possibilitem novas vivências”, escreve Marta Aguiar –, o projecto mais conseguido de Marques de Aguiar terá sido o plano de reconstrução do centro histórico de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, após o terramoto de 1980. Coube-lhe coordenar a equipa local da Direcção-Geral de Urbanização, e “foi talvez em Angra que ele teve a experiência urbanística que o realizou de forma mais imediata, onde sentiu que foi o homem certo no lugar certo”, disse ao PÚBLICO a filha e curadora, que, no entanto, lembra também a sua intervenção em Espinho – em que também participou –, de cuja autarquia foi consultor na década de 60. Aqui ocupou-se também do desenho da orla marítima, do centro cívico junto aos paços do concelho, além da consolidação da malha central da cidade.

“O meu pai precisava sempre de ter o apelo do atelier e da arquitectura, enquanto o urbanismo era quase uma missão, um trabalho para ser feito com o tempo e através do tempo”, nota Marta Aguiar, referindo-se à vertente mais arquitectónica da obra do pai. Neste domínio, o projecto que mais realçará o seu nome será a já citada Escola Francesa do Porto. Trata-se da única entrada relativa a Manuel Marques de Aguiar no Guia da Arquitectura Moderna, que Fátima Fernandes e Michele Cannatà dedicaram à região do Grande Porto no período 1925-2002 (edição Asa, 2003). "Um caso emblemático da evolução e da mudança da linguagem arquitectónica no seguimento da publicação do Inquérito à Arquitectura Popular, no qual o arquitecto Carlos Carvalho Dias participou”, dizem os autores, que vêem nesta obra, que dialoga claramente com os jardins de Serralves contíguos, “uma clara afirmação crítica aos esquemas geométricos e rigorosos dos princípios da arquitectura que, nos anos 50, se identifica com a modernidade: crítica à linguagem do moderno, tentativa de recuperação de uma tradição construtiva e uso dos materiais modernos e tradicionais são os elementos mais salientes de toda a intervenção”.

O edifício da escola é formado por dois pavilhões articulados através de uma galeria, construídos com recurso ao betão, ao granito e ao ferro. “Por contraste, a relação deste conjunto com o seu entorno urbano permanece discreta. Imersos no espaço verde, os volumes parecem querer declinar qualquer papel de representação simbólica, tradicionalmente associada a este tipo de equipamentos”, escreve-se no programa da exposição sobre esta obra seminal de Marques de Aguiar.

Tempos de optimismo

Outro núcleo da mostra é dedicado ao complexo de habitação e comércio na Rua de Gonçalo Cristóvão (1956-62), em que o arquitecto experimentou uma aproximação ao modelo do boulevard urbano. Ainda que não tenha sido concretizado de acordo com o projecto original do autor, este edifício é o que mais se aproxima (também geograficamente) da execução do plano de Robert Auzelle para a Baixa portuense. Em resposta ao contexto, Marques de Aguiar procurou aqui “o arquétipo de espaço urbano que melhor respondesse à vivência urbana desejada pelo PDM gizado pelo urbanista francês", conciliando o aumento do tráfego urbano com a vida social e o movimento comercial do lugar.

Este projecto documenta – nota o arquitecto, professor e historiador Nuno Grande num depoimento associado à exposição de Serralves – esse “momento de grande optimismo” que o Porto estava a viver nos anos 50-60, ao qual o plano de Auzelle vinha dar resposta, “marcando uma nova etapa na vida urbana da cidade”. Um tempo que o processo social e político – nomeadamente com o 25 de Abril de 1974 e, no plano da arquitectura, com o Programa SAAL – viria a deixar para trás, abrindo a cena para novos protagonistas.

De qualquer modo, tanto Álvaro Siza como Diogo Alpendurada recordam agora Manuel Marques de Aguiar como um nome a reter na história da arquitectura e do urbanismo na cidade e no país. Além de que, também do ponto de vista pessoal, foi um homem que deixou uma marca de grande autoridade técnica, científica e humana. “Do ponto de vista profissional, era um homem respeitadíssimo: juntava o bom senso com a capacidade de decidir e de administrar”, diz o engenheiro. Siza lembra dele a imagem de “uma pessoa de trato sem igual, pela simpatia e cordialidade”, e também pela capacidade que tinha de “mostrar autoridade sem ser autoritário”.

 

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