Se são todos iguais como é que podem ser diferentes?

As explicações sobre o carácter manipulador de Costa, a anestesia face ao PS e às suas politicas, a eventual duplicidade de critérios nas críticas ao governo anterior em contraste com as deste, não explicam nada.

A discussão sobre as forças do governo e as fragilidades da oposição não é uma verdadeira discussão porque parte de premissas falsas. A mais importante dessas premissas é a de que há uma diferença de fundo nas políticas económicas, quando não há. E se não as há em matéria de condução económica muito menos existem no mais importante terreno das relações institucionais com a União Europeia e com o Eurogrupo, assim como a aceitação da menorização da soberania nacional com a perda de autonomia orçamental, a capitulação do parlamento português à burocracia europeia e aos interesses dominantes, que impedem uma política que melhor corresponda às nossas necessidades e assegure o desenvolvimento de um dos países mais atrasados da Europa. 

É por isso que as explicações sobre o carácter manipulador de Costa, a anestesia face ao PS e às suas politicas, a eventual duplicidade de critérios nas críticas ao governo anterior em contraste com as deste, não explicam nada, a não ser aquilo que consiste na principal dificuldade da oposição, é a de que não é oposição, é que não está em quase tudo em oposição ao governo e no que está são meros aspectos quantitativos, muitas vezes tão grosseiros que ninguém os leva a sério. Na verdade, a oposição critica o governo às segundas, quartas e sextas de pôr em causa a saúde económica do país com as “reversões” e nas terças, quintas e sábados, para dizer que o crescimento económico do país se deve ao governo anterior. Ou seja, o Diabo anda por aí, embora atrasado em cumprir as suas obrigações com Passos, e o Anjo passeia-se com um autocolante do PS em vez de andar com um do PSD-CDS. Percebe-se? Não, não se percebe, ou melhor percebe-se muito bem, que é um discurso vazio sobre uma plataforma vazia numa gesticulação vazia que não pode dar resultados porque não convence ninguém, nem os próprios.

Significa isso que o PCP e o BE têm razão sobre a existência de uma espécie de “bloco central” não assumido entre o PS, o PSD e o CDS? Têm e não têm. Têm porque como vimos existe um acordo de fundo sobre a governação entre PS, PSD e CDS, mas esse acordo conta com o beneplácito do PCP e do BE. Ambos aceitaram, por razões que não são menores, deixar de lado do acordo da “geringonça”, o centro da política económica para obterem ganhos políticos, sociais e “culturais” no plano simbólico. Os ganhos políticos principais são dois: um, e o fundamental, é impedir, pelo exercício da maioria absoluta PS-BE-PCP, o acesso dos partidos do PAF, PSD e CDS, à governação; e o outro é a travagem do processo legislativo anti-sindical e contra os direitos laborais que estava em curso nos anos da troika e que teria certamente continuado se o PAF pudesse governar. Não são pequenos ganhos, mas tem o preço da deslocação da luta política e do voto parlamentar para fora do núcleo central da governação económica, conforme as imposições do Eurogrupo, como se verifica no Orçamento. Em complemento, as questões de política externa e de defesa, assim como o aspecto crucial das relações europeias, fica igualmente de fora. Não contam com o voto do PCP e do BE, mas não pagam o preço dessas políticas nas decisões centrais do Orçamento, embora obtenham muitas vezes de parte do PS uma política de prudente omissão para não criar problemas à “geringonça”. Podem assim continuar a ter uma política tribunícia e declarativa sem afectar a coligação.

Ganharam também no plano social, reivindicando reversões e vantagens para reformados e trabalhadores, muitas vezes apresentando-se como vitoriosos de combates, sobre aumentos de reformas, sobre medidas sociais, sobre a precariedade, sobre o salário mínimo, quando o PS e o governo fariam em quaisquer circunstâncias o mesmo. Esse jogo competitivo de autoria entre BE e PCP, mas também com o PS, é um ganho para o BE e PCP que podem assim justificar a sua permanência no terreno da governação com a satisfação de reivindicações a que tem dado patrocínio político. 

Por fim, o discurso político da governação do PS com o apoio parlamentar do BE e do PCP, fez uma ruptura com o discurso da “austeridade” do governo anterior. Essa mudança não deve ser menosprezada, mesmo que em muitos aspectos seja apenas retórica, porque rompeu com o processo de culpabilização de trabalhadores, reformados, funcionários públicos, classe média, sindicatos e de um modo geral o “Estado”, pela situação económica do país, colocou-se no terreno da Constituição e deixou de considerar que esta era uma força de bloqueio para “reformas”, deixou alguns aspectos do “economês” da troika e apresentou-se com uma agenda com diferentes prioridades. Insisto, muitas vezes tal discurso foi mais retórico do que real, em particular na submissão às chamadas “regras europeias”, mas é errado menosprezar este aspecto “cultural” simbólico da política. Gente diferente fala diferente, mesmo que faça muita coisa igual.

A questão permanece a mesma: não há oposição a este governo sem sair do terreno da economia da “troika” e do questionar a actual Europa, e quer o CDS quer o PSD não o querem fazer, ou tem medo de o fazer e o BE e o PCP não o podem fazer sem por em causa a sua partilha da governação. 

O problema principal que deveria preocupar quer PS, quer PSD, é o do país real em que vivem, e que deveriam olhar com alguma distanciação da politiquice habitual, e com consciência de que o bom momento que se vive na economia nos dias de hoje, tem um enorme efeito de ocultação enquanto dura e, quando acabar, vai substituir a ocultação pela recriminação. É o costume, num país em que os grandes partidos da governação abandonaram de todo o debate político, o pensar fora da ortodoxia, têm um medo pânico de se portarem de forma inconveniente face aos controleiros a que se submeteram. Isso é válido em primeiro lugar para a economia, mas é-o também para a política externa, como se vê com Angola e Espanha, para a escola onde arrastamos um ensino muito pouco eficaz, para a justiça, para tudo o que seja instituições onde a rotina é regra, ou estão instalados muitos interesses, mesmo quando nada funciona.

Sim, Portugal mudou muito nos últimos anos, inclusive no quadro da União Europeia, mas há fragilidades de fundo, atrasos atávicos, desigualdades gritantes, uma enorme falta de competitividade, má preparação dos empresários, baixa qualificação dos trabalhadores, apatia cívica, corrupção dos grandes e dos pequenos, clientelismo e amiguismo numa administração distante de qualquer critério de mérito, mas muito próxima da “cunha”. Se olharem por detrás do fumo da retórica dos “sucessos”, deixarem o futebol, meia dúzia de casos de êxito empresarial, cientifico, cultural, desportivo, o país continua muito pouco preparado, demasiado boçal e inculto, e indefeso. E como são sempre os mesmos a pagarem os custos das asneiras e como são sempre os mesmos que as fazem que se escapam ao seu custo, o país reproduz com muita eficácia o que não deve numa rotina pastosa entrecortada por crises que nada mudam. E, no entanto, podia fazer-se muito diferente, se fossemos mais livres da cabeça. A chave está aí: mais livres da cabeça, menos comprometidos com a banalidade e com a tenebrosa herança salazarista do “respeitinho”.

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