Há 40 anos nasceu uma biblioteca feita com o coração para descentralizar a cultura

Criada por iniciativa espontânea de um grupo de estudantes da localidade, a Biblioteca Pública do Perosinho, em Gaia, celebra este sábado quatro décadas de actividades culturais que vão além da cedência de livros. De porta aberta para o público local é de fora de portas que têm recebido cada vez mais visitantes numa agenda que abrange áreas como a música, cinema ou artes plásticas.

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Paulo Pimenta
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Na segunda metade dos anos 1970 um grupo de jovens estudantes abordou a Junta de Freguesia de Perosinho, em Vila Nova de Gaia, com uma ideia na manga: queriam criar uma biblioteca para trazer cultura à localidade do interior do concelho. Trabalhava lá como secretário, na época, Luís Moreira. Era dos funcionários mais novos, na casa dos trinta anos, e por isso foi destacado para trabalhar com aquele grupo de jovens.

A junta cede um espaço no edifício onde funcionava e nasce a 31 de Março de 1978 a Biblioteca Pública do Perosinho (BPdP) para proporcionar aos habitantes locais, que na altura pareciam estar longe de tudo, não só o acesso aos livros, mas também a outras áreas da cultura. Do grupo de fundadores fazia também parte o funcionário que os recebeu e que hoje, após ter sido presidente da associação criada há 40 anos durante duas décadas, é o sócio número um e continua a participar na vida activa daquela casa onde os livros são o convite para uma visita, mas que por força da agenda cultural diversificada diz ser “muito mais do que uma biblioteca”.

Confirma esta ideia o actual presidente da direcção, Vítor Fontes, actualmente com 38 anos, mas que aos 16 anos fez pela primeira vez parte de um dos vários corpos directivos. Foi motivado por muitos dos fundadores que passou a frequentar aquele espaço e a participar nas actividades. Fazia-o ele e outros amigos da mesma geração.

Conta-nos que era ali que ainda na infância ia procurar livros de banda desenhada, especialmente os da série Astérix, e mais tarde os grandes clássicos da literatura. “Foi ali que os li todos”, recorda. Com infância e adolescência passada entre as décadas de 1980 e 1990, numa altura em que não havia Internet e durante muito tempo só existiam dois canais de televisão, sobrava mais tempo para brincar e para dar um salto à biblioteca para jogar ténis de mesa ou damas com os amigos. Daí a participar noutras actividades promovidas pela associação foi um passo curto. Na altura ainda não pensava em cargos directivos. É presidente há dois anos. “Uma vez que entramos nisto nunca mais conseguimos deixar. Há uma ligação muito forte e afectiva”, diz.

“Isto é uma família. Todas as actividades são trabalhadas por pessoas da terra”, afirma o sócio fundador, sublinhando que todo o trabalho é feito em regime de voluntariado. “Sempre assim foi”.

Uma “casa aberta” gerida por voluntários

Faz uma viagem ao passado e recorda que é desse espírito de missão que é adquirido o primeiro lote de livros. Os primeiros jovens que idealizaram a biblioteca ainda antes da Revolução dos Cravos criaram uma revista literária, a Despertar, cujas receitas serviriam apenas para cumprir um objectivo: adquirir esses primeiros livros. O fundo de maneio com origem nas vendas da publicação que durou cerca de três anos serviu para, em conjunto com um apoio da junta de freguesia, cumprir esse propósito. Hoje a colecção de livros chega aos 18 mil exemplares.

Progressivamente a biblioteca foi crescendo. Um passo importante para esse crescimento foi a construção do actual edifício onde montou sede, após passagem fugaz por um anexo de uma escola. Até chegar à nova casa, além do serviço de empréstimo de livros, foi realizado “um número infinito” de actividades paralelas noutras áreas culturais como o cinema, música, ou artes plásticas, com a organização de ciclos de cinema, de poesia, concertos, exposições, tertúlias, apresentações de livros e várias saídas de campo para conhecer equipamentos culturais nacionais. Todas estas actividades a custo zero ou nalguns casos a um preço simbólico e não apenas para os sócios. “É uma casa de porta aberta”, diz Luís Moreira.

Uma rua feita de colectividades

Na mesma artéria, precisamente com a designação de Rua da Colectividades, há outras três e futuramente haverá mais uma. Está lá o Rancho Folclórico de Perosinho, fundado em 1968, o Clube de Futebol de Perosinho, criado em 1946, o Grupo Musical da Mocidade Perosinhense, activo desde 1925, constituída por várias orquestras e coros e onde funciona uma escola de música reconhecida oficialmente pelo Ministério da Educação. Brevemente também lá estará a sede da Associação Recreativa de Perosinho, fundada em 1927, que se dedica às artes performativas e ao teatro, também com uma componente formativa. Ao todo estão lá quatro colectividades e brevemente estarão cinco. Frequentemente cruzam-se sinergias entre todas estas entidades.

“É uma espécie de Parque Mayer das colectividades”, diz o actual presidente, que sublinha o nome do Padre Joaquim Marques de Oliveira, na paróquia até 2007, ano em que faleceu, como peça fundamental para este aglomerado de associações.

Foi o pároco, conhecido por "Padre Aviador", por nos anos 1940 ter sido desafiado pela direcção do então Aeroporto de Pedras Rubras a realizar baptismo de voo que cumpriu após tirada a licença, que no final do século XX terá tido a ideia de converter parte do terreno da Quinta da Pena, cujos primeiros registos remontam à primeira metade do século XVII, cedida à paróquia em 1962, numa rua dedicada ao movimento associativo do Perosinho.

É na viragem para o ano 2000 que o actual prédio é construído com apoio financeiro da autarquia, tendo pela primeira vez a biblioteca sede própria.

Desde então, passaram pela BPdP vários autores como Nuno Júdice, Vasco Graça Moura, Mário Cláudio, Francisco Moita Flores, Richard Zimler, Valter Hugo Mãe, Gonçalo Cadilhe, Nuno Crato, Ruy de Carvalho, Ana Luísa Amaral ou Esther Mucznik. “Além destes nomes, recebemos dezenas de artistas plásticos, afirmando a nossa sala de exposições como uma das mais dinâmicas da região”, refere Vítor Fontes. Só em 2017 foram organizadas 21 iniciativas culturais.

Continuidade dependente de viabilidade financeira

Este é um trabalho ao qual se quer dar continuidade durante “pelo menos mais quarenta anos”. Para essa ser uma realidade há alguns obstáculos a ultrapassar. Este é um trabalho que o sócio-fundador e o actual presidente consideram “especial e único” por ter sido materializado por força de iniciativa espontânea e funcionar “inteiramente ao serviço do público”, que agora não é apenas local, de forma “totalmente” gratuita.

O único apoio financeiro que têm ronda os 750 euros anuais cedidos pela junta de freguesia. A autarquia, que já distinguiu a biblioteca com Medalha de Prata de Mérito Cultural e Científico, também não cobra renda à direcção pela utilização do prédio. Porém, há um senão. “No ano passado, recebemos uma notícia que abalou esta e outras instituições. Pela primeira vez está a ser cobrado a este projecto e a outros o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), com efeitos retroactivos desde 2013”, conta. São 630 euros anuais que esgotam “quase na totalidade” o apoio de 750 euros dados pela junta. Apesar de estarem isentos do pagamento de uma renda, existem os gastos correntes inerentes ao funcionamento da biblioteca que serve cada vez mais um público “vindo de fora do concelho”, mas também o local que vive na freguesia e noutras vizinhas do interior de Gaia, como Pedroso, Grijó, Sermonde, Serzedo, Canelas, Gulpilhares, “longe da Biblioteca Municipal”. Actualmente são 300 sócios, “nem todos activos”, que pagam uma cota anual de 7,5 euros, “insuficiente” para cobrir todas as despesas: “É um sufoco para instituições que funcionam exclusivamente em regime de voluntariado e que muitas vezes substituem as funções do Estado. Já contactamos a autarquia para expor o problema e estamos profundamente convencidos de que terão a sensibilidade para que tudo se resolva. Se isso não acontecer a continuidade pode estar comprometida”.

O sócio número um não tem dúvidas de que tudo será resolvido, “como sempre foi”, acima de tudo, se continuar a existir vontade dos que lá trabalham e continuam a trabalhar “com o coração”.

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