A dieta sublime de José Avillez combina um extremismo delicioso com os prazeres mais tradicionais da nossa mesa

Avillez concentra numa pequena lâmina de leitão todos os sabores — e texturas — dum leitão assado dos bons. Está lá o estaladiço do vidro. Está lá a suavidade da gordura. E, sobretudo, está lá o sabor todo.

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O leitão assado de José Avillez Nuno Ferreira Santos

Almoçar no Belcanto de José Avillez foi como ter ido à Mealhada comer leitão assado, ter ido ao Guincho comer carabineiros, ter ido a Cascais comer amêijoas, ter ido à praia das Maçãs comer um robalo, ter ido a Nafarros comer um cozido à portuguesa e ter ido ao próprio paraíso comer gelados e doces. Tudo num só almoço, sem fartura de espécie nenhuma.

A cozinha de José Avillez é realmente mágica porque a realidade não chega para explicá-la. Ele captura as essências dos sabores portugueses e satura pequenas quantidades de ingredientes com elas.

Ele consegue concentrar numa pequena lâmina de leitão todos os sabores — e texturas — dum leitão assado dos bons. Está lá o estaladiço do vidro. Está lá a suavidade da gordura. E, sobretudo, está lá o sabor todo.

Como é que ele consegue? Não sei. O mais estranho é que não apetece comer mais. Fica-se satisfeito. A vontade de comer leitão fica deliciosamente satisfeita.

É uma espécie de milagre da multiplicação dos peixes ao contrário. É como se alguém dissesse que só pode passar duas horas em Portugal mas quer provar tudo o que há de bom em Lisboa, Cascais e Colares. José Avillez vai buscar travessas com os melhores exemplos destes pratos, coloca-as na máquina mágica de encolher que está escondida no primeiro andar, encolhe-as até ficarem do tamanho duma caixa de fósforos e finalmente dá-lhes um aspecto bonito e novo para serem irresistíveis.

Atenção que o milagre é completo. O cozido à portuguesa do Belcanto concentra-se numa só folha de couve — mas não é uma aproximação. Não se sacrificou nada. O sabor é de um cozido completo, com todos os ingredientes. Poder-se-ia comer em trinta segundos. Só os uis e ais de espanto perante a delícia é que prolongam a duração do prazer.

Depois de uma conversa com José Avillez fiquei com uma ideia da pessoa que ele é. É uma estranhíssima combinação: é uma pessoa muito gulosa e muito cuidadosa ao mesmo tempo. Quer comer saudavelmente, sem correr quaisquer riscos, mas paradoxalmente não está disposto a abdicar de um único prazer da mesa.

A arte culinária de José Avillez poderia chamar-se uma dieta sublime em que nem a palavra dieta ou a palavra sublime precisam de qualquer diluição. É uma dieta porque as quantidades são pequenas. É sublime porque essas quantidades satisfazem inteiramente. É a parte mágica: não se chora por mais porque ainda estamos a lamber os lábios e aparece outra obra-prima.

Na cozinha de José Avillez não há contradições. Sim, é cozinha de autor. Sim, é cozinha tradicional portuguesa — no conteúdo, no sabor, na continuidade. Sim, é cozinha moderna — na forma. Sim, é comfort food — na satisfação, no prazer. Sim, é provocação — no desafio que faz de nos rendermos aos nossos sentidos.

Considero-me um tradicionalista, apaixonado pela cozinha regional portuguesa: no restaurante Belcanto tive o prazer incrível de visitar vários grandes pratos e grandes ingredientes portugueses, apurados até à essência e concentrados até à plenitude.

As versões de Avillez não são simulacros: são reiterações. Não contêm qualquer atropelo nem cedem a capricho algum na ganância de originalidade. O cozido à portuguesa dele é, antes do mais, um verdadeiro cozido à portuguesa. Não contém qualquer sabor que não exista no cozido à portuguesa. Este aspecto é importantíssimo. É aqui que entram a magia e o encantamento.

Como é que ele conseguiu? Não sei. Desconfio que é trabalhando muito, parando só quando atinge a perfeição. Ele tem uma equipa formidável que trabalha que se farta com uma concentração que impressiona — parecem cirurgiões. Sente-se que gostam e que se orgulham do que fazem. David Jesus é o chef de cozinha e Filipe Pina é o sous-chef: ambos são admiráveis e inspiram, confiança. Américo dos Santos é o chef de pastelaria e tem imenso talento. Mas todas as pessoas que trabalham no Belcanto são de uma simpatia e eficiência extraordinárias.

É um prazer infinito comer no Belcanto — mas é outro prazer ver trabalhar tão bem.

Parabéns — e obrigado — a todos.

P.S. Pela primeira vez na vida escrevo sobre uma refeição que não foi paga por mim: foi o José Avillez que me convidou. Resta-me garantir que doravante as minhas visitas ao Belcanto serão pagas por mim com todo o prazer e toda a justiça.

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