Será possível a floresta sem pessoas e sem... árvores?

O Governo sentenciou que o principal réu das tragédias de 2017 foram as árvores. Vai daí, legiferou com o esquadro e transferidor.

Aplaudo muitas das medidas, sempre procrastinadas, em torno ou por causa da floresta, vista agora como prioridade das prioridades, ou seja, “causa nacional”. Todavia, concretizadas a várias velocidades. Umas, incompreensivelmente mais lentas como as referentes à organização, direcção e coordenação das diversas autoridades e entidades de prevenção e combate aos incêndios. Outras, de supetão, relativas ao real país florestal que anda num corrupio por causa de leis, ditames e prazos, todos encavalitados e mal-amanhados.

O Governo sentenciou que o principal réu das tragédias de 2017 foram as árvores. Vai daí, legiferou com o esquadro e transferidor sobre árvores, ramos, alturas e distâncias (mas não, estranhamente, sobre volumes), com a mesma facilidade com que se decretou a culpabilidade arbórea. Mal comparado, é como fazer recair a culpa da sinistralidade rodoviária nos veículos e não nas pessoas, estradas, prevenção e fiscalização.

Um exemplo para ilustrar o “trabalho de gabinete”: ignorou-se o efeito positivo da menor distância entre árvores, sobretudo folhosas, para aumentar a humidade, minimizar a radiação solar e impedir um mais rápido e abundante crescimento vegetal no solo.

Há dias, fiz uma viagem até Guimarães, através de auto-estradas. E o que vi? A expressão mais patética da serôdia vitória da aparência. Cortaram-se uns pobres pinheiros, alguns isolados ou na sua estatura de infância liliputiana, bem como umas ramagens em versão ad hoc. Mas haverá alguma pobre alma que se convença que são aquelas desgraçadas e abatidas árvores ao longo de quilómetros e quilómetros que estão na origem dos fogos?

Enquanto no plano político-partidário, há jogos florais de acusações e contra-acusações, de descarte de responsabilidades mesmo perante a evidência de relatórios circunstanciados e independentes, tudo se concentra em jogos arbóreos de depenar ou abater umas tantas árvores para dar uma ideia de sageza florestal.

De repente, no pinhal de Leiria e em tantas outras zonas dizimadas, a culpa tinha de ser das suas árvores, as mesmas que bem lá conviveram e se reproduziram durante décadas e décadas senão mesmo séculos. Claro que foram um dos combustíveis para a praga dos fogos, mas nunca o seu principal causador.

De repente, pessoas sem meios, velhos sem rendimentos, criaturas sem poder mediático viram-se confrontados com a putativa autoridade da sabedoria estatal, o controlo administrativo da GNR e o risco de expropriação sob a capa de coimas. Apavoradamente, tudo se começou a cortar e a abater, os condenados eucaliptos e resinosas, mas também árvores frutíferas e qualquer outra espécie que lá habitasse. Um insólito improviso…

Depois, esta luta desenfreada contra o prazo determinado (15 de Março, estranhamente antes das herbáceas voltarem a crescer abundantemente no solo!) levaram a que a lei da oferta e da procura proporcionasse aumentos de custos para os proprietários, em muitos casos especulativos. Mas quando se estabeleceu aquela data peregrina de Março - entretanto prolongada - não houve ninguém, no omnisciente Estado, que tivesse estimado esta “janela de oportunidade” para o negócio abusivo? Não houve ninguém que fizesse umas simples contas para saber quantos profissionais são sabedores e necessários para um trabalho de milhares e milhares de hectares e, assim, tenha aberto a porta a curiosos e carniceiros florestais?

Muito mais decisivos do que o abate de árvores – o tempo se encarregará de evidenciar a erosão dos solos em algumas destas “peladas”, ainda que bem depois dos seus decisores já se terem afastado – são a limpeza dos matos e o estabelecimento de aceiros e outras vias de acesso florestal que estão em execução ou já planeados.

Que mal fazem as árvores se houver verdadeira vigilância florestal, sapadores florestais, resineiros em habilitação e número necessários, punição efectiva para os incendiários e melhor coordenação das diferentes autoridades e forças.

O principal problema da floresta é o despovoamento. O interior e, sobretudo, o interior do próprio interior foram ostracizados. O campo foi submetido a uma indisfarçável cultura do descarte, da indiferença e da insensibilidade, apenas abanada por dramas como os que aconteceram. A aldeia foi dizimada pela “via rápida” da política impositiva do actualismo pseudo urbano que despreza a política rural no tempo que está para além do tempo eleitoral.

Entretanto, foi anunciado mais um tique socialista: a um problema responde-se com mais uma instituição, agora uma empresa pública a instalar em… Pedrógão!

Caricaturalmente, quase se pode dizer que o problema dos incêndios ficaria erradicado se deixasse haver floresta. E pessoas.

P.S. O PIB cresceu 2,7% em 2017? Qual seria o valor se se descontasse a destruição de mais de 500.000 hectares de floresta ardida? A estatística a ludibriar a realidade…

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