Sei o que fizeste no século passado

Ler as notícias de há 85 anos continua a ser muito instrutivo se queremos entender as técnicas políticas do nacional-populismo.

Vamos ler os jornais de há oitenta e cinco anos.

Num dia como hoje a Alemanha fervilhava de atividade. Escrevia então O Século de 29 de março de 1933, num artigo enviado de Munique na véspera: “foi publicado, esta noite, o manifesto do partido racista, que convida o povo alemão a boicotar os comerciantes, os advogados e os médicos israelitas, como resposta à propaganda anti-alemã no estrangeiro. Afirma que a revolução nacional alemã pôs termo ao pesadêlo marxista-judeu, mas que nenhum dos 'bonzos' judeus ou marxistas recebeu a menor arranhadura. Este movimento de represália começará em 1 de Abril próximo e prosseguirá até ordem em contrário. As tropas de assalto hitlerianas receberão ordem para se postarem diante dos armazéns de israelitas a fim de aconselharem as pessoas que ali queiram entrar a preferir as casas alemãs”.

Mais claro não poderia ser. O boicote aos comerciantes judeus foi o primeiro sinal de que o antissemitismo de Hitler era para levar a sério.

Prossegue O Século: “Esta noite, circularam pelas ruas de Berlim camiões que transportavam rapazes com o uniforme 'nazi' e que agitavam bandeiras com as côres preta, branca e vermelha. Os veículos ostentavam inscrições como estas: 'Alemães! Comprai mercadorias alemãs exclusivamente em casas de alemães'. O mesmo gritavam os ocupantes dos carros.”

E terminava: “O governo anunciou que deixará que se manifeste 'a acção espontânea' de protesto, se não cessar a campanha anti-alemã, realizada no estrangeiro, a pretexto de pretensas atrocidades anti-semitas”.

Ler estas notícias continua a ser muito instrutivo se queremos entender as técnicas políticas do nacional-populismo. Reparem: as ações dos provocadores racistas são sempre supostamente espontâneas e supostamente motivadas pelas grandes injustiças de que os pobres racistas são vítimas. Mas o governo, que finge nada ter a ver com essas provocações, recusa-se a contê-las enquanto não cessar a campanha “anti-alemã” que basicamente dá conta das provocações racistas. Ou seja: se nos acusarem de antissemitismo não teremos outro remédio senão deixar que haja mais antissemitismo.

A doutrina do poder nazi era simples: os alemães, mesmo quando cometiam crimes, nunca poderiam ser considerados perpetradores, mas sempre vítimas. O Século de 6 de fevereiro já tinha dado conta da mensagem de um dos líderes nazis na Alemanha central: “os alemães vão unir-se para reparar as injustiças de que têm sido vitimas”. A 13 de março o mesmo jornal dava conta de um discurso do chefe da diplomacia alemã, Konstantin von Neurath: “se não fizer justiça à Alemanha, a Europa rolará para o abismo”. Durante todo o mês de março tinham ocorrido agressões contra judeus e ações de vandalismo contra estátuas de estadistas alemães de origem judaica. Enquanto isso, Hitler fazia discursos apelando à paz. A França e a Grã-Bretanha enviavam diplomatas para conversações e admoestavam a Polónia por esta ser demasiado estridente na defesa dos seus interesses (“começa a formar-se a opinião de que a Polónia não tem 'direito de esgrimir com a espada francesa', dizia O Século de 28 de março de há 85 anos).

Uma das mais impressionantes imagens na imprensa daqueles dias saiu n’O Século de 25 de março. A legenda diz tudo: “Um israelita de Munich, que foi maltratado e preso pelos 'nazis', apresentou queixa às autoridades. Para o castigar dessa 'audácia', os hitlerianos passearam o pobre homem através das ruas da cidades, descalço, as calças cortadas pelos joelhos e um cartaz, pendurado ao pescoço, onde se lia: Sou judeu, mas não vou apresentar queixa contra os 'nazis'”.

O sentimento de impunidade. A hipocrisia organizada nas capitais e chancelarias. A duplicidade dos demagogos etno-nacionalistas. Estávamos a quase dez anos dos campos de extermínio. Mas já estava ali tudo, sob os olhos de quem quer que lesse jornais. O mundo sabia. Só decidiu fingir que não imaginava onde isto podia levar.

Não faltam lições para os dias de hoje.

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