Isto começa como Kramer vs Kramer e acaba como Shining

Xavier Legrand refere-se a Custódia Partilhada como gesto político. É um filme que fala de violência familiar, de mentalidades, de tabus e de silêncios. Surpreende a convicção com que o cineasta francês coloca o thriller no lugar do filme “social”. Para intensificar o medo do espectador.

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“Um mau cônjuge pode ser um bom pai? Tenho uma ideia sobre isso e assumo-a plenamente.” Quem o diz é Xavier Legrand, que em Custódia Partilhada coloca o thriller, medo puro, na casa do “filme social”

Se no princípio é a palavra, Xavier Legrand, realizador, desembaraçar-se-á dela. O espectador ainda começa por se instalar num tipo de filme. Mas esse, onde muito se fala, diz pouco sobre o que se vai passar. Não é esse o filme que vamos ver. É falsa pista. Vamos sentir-nos assim várias vezes ao longo de Custódia Partilhada/Jusqu’a la garde.

Abre com uma cena de tribunal, tensa disputa entre casal, duelo comandado por longas tiradas de advogados em cenário único, enquanto uma juíza folheia o processo e não entrega facilmente o olhar.

Miriam e Antoine, divorciados, querem a regulamentação da custódia dos filhos, em especial do mais novo, Julien. A mãe alega que o adolescente quer distância do pai, porque tem medo dele. O pai contrapõe que é a ex-mulher que manipula o filho, que o afasta.

Nesses primeiros momentos de Custódia Partilhada, o espectador tem as expectativas de “filme de processo” apoiadas no olhar da juíza. Talvez comece a partilhar das dúvidas dela: qual deles, pai e mãe, mente melhor?

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Xavier Legrand, prémio de realização em Veneza 2017 LAURENT CHAMPOUSSIN

Começamos a negociar os nossos pactos com Miriam (Léa Drucker) e Antoine (Denis Ménochet). Talvez nenhum deles seja o que parece, afinal — a secura acossada dela, que se diz vítima, pode esconder zonas escuras, e a fragilidade dele pode ser a tocante verdade obstruída por um perfil de monstro que nos foi dado de bandeja, talvez excessivamente pronto a consumir. 

Ou talvez não...

Descarnando-se, perante as dúvidas e as palavras, Custódia Partilhada liberta-se e revela a ossatura de filme de acção — como se Kramer vs Kramer (Robert Benton, 1980) conseguisse dizer uma verdade mais complexa ao transformar-se em Shining (Stanley Kubrick, 1980).

Custódia Partilhada corre do filme de tribunal para o thriller e chega ao terror. É, como veremos, um movimento que diz algo da caminhada do realizador francês Xavier Legrand, 39 anos, que tem carreira como actor e que no teatro está “habituado a interpretar textos dos grandes autores”. É homem de uma cultura europeia ligada a uma história teatral que “desenvolveu há muito o nosso sentido da narrativa, mas também do comentário da acção mais do que a acção em si mesma” — veja-se “o Coro na tragédia clássica”, aponta. Foi para se libertar disso, para se “libertar da língua, da palavra, da narrativa que se faz pela palavra”, que se virou para o cinema.

Realizou uma curta-metragem, Avant que de tout perdre (2013), a história de uma mãe e dos seus filhos que um dia resolvem expor a situação de violência de que são vítimas — como quem revela o segredo que os envergonha e que todos acompanharam sem o saberem, sem o notarem, sem repararem, o que é paradigmático na violência dentro da família, podemos estar ao lado e nem repararmos.

“Sim, a violência conjugal sabe bem esconder-se. Infelizmente é certo e sabido que todos conhecemos de perto ou de longe alguém que é vítima desse tipo de violência, mesmo ignorando-o. É uma verdadeira omertà.

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Thomas Gioria, descreve o realizador, “tem uma qualidade rara num actor, está pleno de escuta. É um adolescente receptivo, com uma respiração cheia, que não tem medo das suas emoções”

O tema sério faz-se thriller

Nessa curta-metragem, que recebeu o Grand Prix do Festival de Clermont-Ferrand e um César (e foi nomeado para o Óscar), a acção já era o modo de exposição. Avant que de tout perdre caminhava já para o action movie. Reencontramos a família desse filme em Custódia Partilhada, longa-metragem distinguida em Veneza 2017 com o prémio de melhor realizador: o mesmo pai, a mesma mãe (os mesmos intérpretes, Léa Drucker e Denis Ménochet), agora numa fase mais avançada da crise familiar que deveria ser resolvida, ser contida, ser regulamentada — o divórcio, o processo, a custódia. Mas não, a acção não pára. É a mesma família cinematográfica: o espectador toma consciência pela acção.

“É bastante irónico”, concorda Xavier Legrand, “visto que a cena de abertura de Custódia Partilhada é uma longa sequência de diálogos, com tiradas longas, como se fosse um sketch teatral, enquanto o resto do filme se passa quase em silêncio, como se não houvesse mais nada a dizer ou a acrescentar. Achei logo interessante entrar para o filme dessa forma.”

Nas pesquisas, assistiu a audiências de reconciliação com juiz. “O ambiente, o protocolo, os casais, os advogados, as tensões, os não-ditos, tudo se joga em 15 ou 20 minutos durante os quais a intimidade do casal é abordada, o seu passado exposto e a nova vida das crianças regulamentada. É um dia importante: é o fim de uma união, é um processo verbal que vai decretar a separação, acabar com um projecto de vida, apagar um sonho de família que nasceu frequentemente muitos anos antes. Acho muito forte expor as personagens, estabelecer o contexto desta família, para poder entrar nela mais tarde. Pareceu-me evidente que a porta de entrada deveria ser pelo exterior da família para poder mais tarde entrar por ela adentro. Sobretudo, decidi começar assim porque o assunto pedia isso. Toda a gente diz que é um filme sobre a violência conjugal, mas é antes de tudo um filme que coloca o problema da parentalidade e da conjugalidade. A Justiça francesa, por exemplo, considera que a violência conjugal é uma violência sobre o cônjuge e que as crianças que vivem nesta relação parental não são afectadas por ela, não são colocadas em perigo, porque a violência não se dirige a elas. É o debate que se abre: um mau cônjuge pode ser um bom pai? Tenho uma ideia sobre isso e assumo-a plenamente.”

Assume convictamente o “tema”, mas também a forma de o tratar. Sobre o regresso, com esta longa, ao assunto da curta, como se a continuasse, Xavier fala decididamente sobre um território que tem privilegiado.

“A violência familiar é um assunto em que ainda há uma série de tabus em todas as mentalidades, meios sociais, culturais e religiosos. É uma terrível calamidade que parece não recuar. Sinto-me tocado por isso como cidadão — nomeadamente, porque sou homem e acho que os homens não falam suficientemente disto e é tempo de isso acontecer. E porque não suporto que no meu país, onde se diz ‘tragédia familiar’, em vez de se dizer ‘assassínio’, quando um membro da família mata outro, uma mulher seja assassinada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a cada três dias” — apaixonado pelas tragédias gregas, percebeu-se, encontra o equivalente, no nosso mundo, “nas mortes dentro da família, nos laços de sangue, nos parricídios e fraticídios”.

Já o ouvimos referir-se a Custódia Partilhada como gesto político, porque “fala de um facto social, de leis que o regulam e de mentalidades que se formam à volta dele e que é preciso mudar, para que se questione o sistema”. Por isso, tem sido surpreendente para alguns a forma não menos convicta como colocou o thriller no lugar do filme de “temática social”; a forma como um tema “sério” se faz thriller.

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"Um mau cônjuge pode ser um bom pai?", pergunta Xavier Legrand

“É verdade que alguns espectadores reagem a isso”, concede. “Mas era primordial insuflar cinema de género para não ficar no nível do filme social, ou seja, ao nível teórico. Ou então seria melhor fazer um documentário.”

Isto não é mesmo teoria. Até porque, conta Xavier para legitimar a passagem de um género a outro, encontrou durante a pesquisa “muitas vítimas” que ao descreverem as suas vidas “descreveram situações de thriller”. (Foi nesse momento que ele tomou a tal decisão de “começar o filme como Kramer vs Kramer e acabar como Shining.”)

Custódia Partilhada trabalha então as possibilidades de intensificar a experiência de espectador — não é um filme “sobre” —, nunca fazendo esquecer que se está a ver um filme.

“Um assunto espinhoso e exigente como a violência na família e a tomada de reféns de crianças deve permitir outras perspectivas que falem ao maior número de pessoas possível. Acredito que o poder do cinema é dar outra visão aos assuntos abordados. Pela ficção, pela identificação das personagens, pela consciência plena de que se está a ver um filme e não um documentário ou um filme ‘social’ que muitas vezes insiste sobre a mesma nota negativa e miserabilista.”

O thriller é então libertação, elevação. Estamos a escrever e a reviver pela memória uma sequência de Custódia Partilhada. Aquela que, embora tratando-se de um momento de perseguição com um objectivo — um pai corre atrás de um filho, um persegue, o outro foge, para descobrir onde é que a ex-mulher e a família agora moram —, se desprende da narrativa e se concretiza sem objectivo algum a não ser o de aprisionar o medo. É uma coreografia depurada suspensa sobre a narrativa, pedaço de abstracção como num western urbano de John Carpenter (atiramos isso a Legrand e ele responde: “É verdade, é a experiência do medo. É um cinema mais corporal do que intelectual. É uma dramaturgia da emoção mais do que a reflexão” — isto é dito, surpresa, por um cineasta francês).

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Antoine (Denis Ménochet) e Miriam (Léa Drucker): a secura acossada dela, que se diz vítima, pode esconder zonas mais escuras? A fragilidade dele pode ser a tocante verdade do “monstro”?

Um olhar sobre o mundo

Com as portas abertas, entremos então por esta família adentro.

Miriam está exaurida, sem forças para se autonomizar de Antoine, que utiliza o filho Julien (Thomas Gioria) como arma de arremesso contra ela.  A família é espaço do medo — o medo das vítimas, mas também de agressores como Antoine, homem “que se vitimiza constantemente para conseguir reivindicar coisas legítimas e chegar aos seus objectivos”. Negociaremos sempre a nossa posição de espectadores perante cada personagem. Adequamos, acertamos o foco ao longo do filme — por exemplo, poderemos até sentir ternura, pode ser a palavra, por este pai abusador. O mérito disto, que se chama mise-en-scène, é também dos actores, ajudaram a perturbar a previsibilidade do “filme de tema social”.

“Antoine é um tipo de personagem que podemos classificar de perverso narcísico. Mas estava fora de questão mostrar um monstro. Mostramos um homem. Antoine é um homem, um homem doente, depressivo, atingido por um ciúme doentio, convencido de que Miriam lhe pertence.”

O filme desdobra-se, aliás, para dar atenção às personagens e aos seus espaços — aquela carrinha branca e Antoine, uma relação fusional... Há o desejo de permitir que o mundo de cada personagem se revele. Falamos a Xavier da forma como Custódia Partilhada, como um desdobrável que nos dá notícias do mundo, faz os planos e as personagens comunicarem entre si como estilhaços secos.

 “Os diferentes pontos de vista através dos quais o espectador é convidado a olhar permitem que não se fique preso do sentimentalismo, que não se afirme uma verdade, mas que se constatem várias. Mostrar uma vítima a procurar escapar ao seu carrasco ou um monstro a caçar a sua presa não é um olhar sobre o mundo: é um conflito linear, sem interesse, sem complexidade, logo, não humano. Em Custódia Partilhada vê-se bem que as personagens estão paralisadas, perdidas, injustiçadas, sem recuo ou sideradas. Cada um tem a sua verdade, o seu poder, as suas reivindicações, as suas acções e as suas crenças... O conflito torna-se apaixonante, porque é complexo — como a alma humana.”

Lá porque se diz thriller, não se imagine espectacularização à maneira americana, com música a indicar ao espectador o que ele deve sentir ou a avisar que há momento de tensão na esquina. Não se foge do documentário para se “cair no sórdido”. Mesmo o final paroxístico, quando o pai investe sobre o domicílio familiar como lobo mau, é trabalhado por Legrand com antídotos de quotidiano, da trivialidade da vida. Afasta-se qualquer possibilidade de fantástico ou de extraordinário. Ele chama ao filme, por isso, “thriller do real” — vai “ao essencial, a direito, sem desvios, sem gorduras, frontal e sem concessões”. São exemplares os intensíssimos momentos entre pai e filho, entre Denis Ménochet e Thomas Gioria, dentro do carro. Os estupendos grandes planos sobre o adolescente resultam menos como um artifício formal imposto do que como reacção do próprio filme à violência que não se contém. Perante o que se passa no rosto de Thomas Gioria — como é que ele se distancia? O que sabe ele, como se defende? —, podemos fazer perguntas, continuaremos sem respostas.

“Thomas foi um dos primeiros miúdos que encontrei. Soube imediatamente que era ele. Tem uma qualidade que é rara num actor, está pleno de escuta. É um adolescente muito receptivo, com um rosto expressivo, uma respiração cheia, que não tem medo das suas emoções. Sobretudo, tem um desejo de interpretar inaudito. Encontrei-me com ele vários meses antes da rodagem de forma regular, complexificando cada vez mais os ensaios antes de o escolher definitivamente. Era preciso ver a sua motivação.” É preciso ver, será sempre inacreditável.

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