Desaparecido durante décadas, o filme que antecipou o Holocausto está de regresso aos cinemas

O filme remonta a 1924 e foi encontrado numa feira em Paris, há três anos. Esteve a ser recuperado e prepara-se para regressar às telas de cinema em várias salas europeias.

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Imagens do filme de 1924, agora recuperado e em exibição DR

Antes do horror da Segunda Guerra Mundial, houve um filme que antecipou o nazismo. Esteve perdido durante décadas até ser encontrado numa feira de produtos usados em Paris, em 2015. A película, que remonta a 1924 — em silêncio e a preto e branco — foi restaurada através de um financiamento de 86 mil euros obtido com a ajuda de crowdfunding. Está actualmente em exibição em Viena, na Áustria.

O filme conta a história de uma cidade que começa a hostilizar e a expulsar judeus. O título do filme não deixa muito à imaginação: Die Stadt Ohne Juden, numa tradução livre será qualquer coisa como A Cidade Sem Judeus. As primeiras imagens mostram uma mulher insatisfeita com o aumento dos preços no mercado e a atirar peças de fruta a um judeu que vai a passar na rua.

É dito a todos os judeus da cidade que devem abandonar a zona até ao dia de Natal. Os mais pobres abandonam a cidade descalços, caminhando sobre a neve, acompanhados por soldados com cassetete. Outros saem da cidade em comboios, em despedidas apressadas e desesperadas, com famílias a serem separadas. O cenário parece familiar? É provável que o recorde de qualquer filme que retrate o regime nazi.

O filme baseia-se num livro distópico e satírico escrito por um jornalista austríaco judeu, Hugo Bettauer. Foi realizado pelo também austríaco HK Breslauer enquanto Adolf Hitler escrevia Mein Kampf, numa prisão alemã, antes de a perseguição aos judeus da Alemanha Nazi ter conhecido o seu período mais negro com os campos de concentração e extermínio.

O filme tem um final mais feliz do que aquele que a realidade e crueldade humana lhe reservariam. Depois de, no filme, os judeus abandonarem a cidade, a vida piora. O comércio internacional e a economia caem e a cidade fica vazia e pobre. O governador acaba por convidar os judeus a regressarem e as famílias cristãs e judaicas voltam a estar reunidas.

Um dos actores, Hans Moser, uma das mais famosas estrelas austríacas, estava casado com uma mulher judaica. Recusou divorciar-se quando em 1938 os nazis tomaram o controlo da cidade. Chegou mesmo a escrever uma carta a Hitler, seu fã, pedindo clemência. Ela acabaria por fugir para a Hungria, onde voltariam a estar juntos depois da guerra.

Nikolaus Wostry, director do arquivo de filmes da Áustria, explica à BBC que o filme surgiu numa altura em que o anti-semitismo começava a ganhar dimensão no país e que visava transmitir uma mensagem de combate à intolerância e ao racismo que cresciam à medida que os judeus que fugiam à miséria da Primeira Guerra Mundial começavam a chegar à capital. “Hugo Bettauer era uma pessoa que tentava fazer com que a sociedade se tornasse mais tolerante para com os judeus, os homossexuais e as mulheres que procuravam participar na vida política”, conta.

À data, o filme foi um sucesso e chegou às telas de cinco grandes cinemas em Viena, até “a direita reagir contra ele”. Um ano depois de o filme ter sido exibido, Hugo Bettauer foi morto por um nazi, que organizou uma campanha de ódio contra o escritor e jornalista. “A morada dele foi publicada em todos os jornais com a indicação de que tal pessoa não devia fazer parte da nossa sociedade”, conta Nikolaus Wostry. O julgamento do assassino foi “grotesco” e terminou com uma curta pena.

O filme, em exibição em Viena, deverá chegar a mais cidades europeias ao longo deste ano.

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