Instituições sociais não estavam preparadas para serem "empresas"

Bispo de Santarém defende que as instituições de solidariedade social são afectadas pelo vaivém de prioridades dos ministros que tutelam o sector. E que precisam de um maior acompanhamento da Segurança Social.

Instituições sociais não estavam preparadas para serem “empresas”

Para D. José Traquina, à frente da diocese de Santarém desde Outubro passado, “não pode ser só o mérito” a definir o pagamento do trabalho. “As pessoas podem não ter a mesma habilitação, a mesma formação, mas têm uma família para criar”, frisa em entrevista feita em parceria com a Renascença, que a transmite hoje às 12h00.

Está à frente de uma diocese relativamente recente. Tem quarenta e poucos anos, um bocado “entalada” entre Lisboa e Leiria-Fátima. Que realidade encontrou?
A palavra “entalada” fica bem. Acho mesmo que é a única diocese de Portugal que não tem extrema com Espanha nem com o Oceano Atlântico. Tem pelo meio o rio Tejo, uma linha de comboio e uma auto-estrada. É uma diocese com características próprias das cidades, vilas e aldeias, de 250 mil habitantes, num conjunto de sete vigararias, 113 paróquias, 70 padres sendo que cerca de 60 no activo, com responsabilidades nas comunidades. Obriga a uma entrega às vezes preocupante.

Dizem as estatísticas que se trata de uma região com um poder económico acima da média do país, mas com muito pouco dinamismo económico e um grande envelhecimento. Que realidade social encontrou?
Temos essa preocupação em zonas da diocese, nomeadamente na zona sul do rio Tejo, por exemplo, zonas do município da Chamusca, em que são comunidades mais pequenas e não houve grandes investimentos económicos. Corresponde de facto a uma zona deprimida nesse sentido. Precisa de maior desenvolvimento para fixar população. Há uma dimensão de interioridade, mesmo às portas de Lisboa, e que se identifica com grande parte do país que é o interior que não teve investimentos. Uma santa casa da misericórdia, as câmaras municipais são instituições que garantem alguns empregos e depois há uma ou outra empresa que assegura também, mas o comum [das pessoas] fica muito dependente. Ou vem para Lisboa ou vai para outra cidade mais próxima onde encontra algum trabalho.

Temos outras preocupações da parte institucional, e não é só o caso do Ribatejo ou da diocese de Santarém, que é como é que as nossas instituições de solidariedade que prestam atenção e cuidado às pessoas — tendo as pessoas menos rendimentos para poder colaborar e sendo instituições que conseguem garantir emprego — se vão segurar no futuro.

Essas instituições não acabam por estar muito dependentes do Estado?
Sim, mas a certa altura também foram aliciadas a criar valências para servir as populações, mas depois mudam-se as regras e as instituições ficam com funcionários seus sem conseguir corresponder. No percurso das instituições de solidariedade há alguma injustiça no que respeita ao tratamento continuado. Vem um ministro que cuida por cantinas sociais e pede às instituições que peguem naquela valência; muda-se o ministro, acaba-se essa proposta. E os empregados que se colocaram o que se faz? As instituições sofrem com estas mudanças todas. Há uma mudança de ordenados, muito bem, mas as instituições podem não estar habilitadas. É bom que se faça acompanhamento das instituições para saber se aguentam.

Tem neste momento instituições sem essa capacidade?
Temos uma santa casa da misericórdia na diocese que teve de ter uma intervenção do bispo, da diocese, para resolver pontualmente uma crise que tem a ver com a economia da instituição. E ainda não está resolvida. Teve que se fazer uma paragem nos estatutos, porque a direcção não conseguiu resolver o problema. Entrou uma comissão por seis meses e está a pedir mais seis para tentar equilibrar a instituição e depois entregá-la aos irmãos.

Como é presidente da comissão episcopal da pastoral social terá mais algum conhecimento da realidade do país. Há muitos casos de instituições assim para além da sua diocese? Esses problemas colocam-se de forma generalizada?
Colocam-se, há instituições com muita dificuldade em resolver o seu problema económico, porque as instituições não estavam preparadas para se tornarem “empresas” com rendimentos próprios. Por exemplo, na infância, apoiaram-se centros sociais paroquiais para terem creche e jardim-de-infância. A seguir, o Estado constrói um jardim-de-infância ao lado, a certa altura não justifica a infra-estrutura. Mas fica a educadora de infância, que não tem ordenado mínimo, que o merece, mas precisa de crianças para educar. Então despede-se com indemnização justa com certeza. Isso leva a instituição a uma situação complicada de gerir.

Quem esteve na gestão das instituições sabe o que custa. Quase todas as instituições são geridas por voluntários que ganham coisa nenhuma. Estão ali de corpo inteiro, não recebem, mas às vezes não são considerados. Nem todos funcionaram bem... É natural. Quando se trata da interioridade do país, naturalmente por haver interioridade, também existem menos pessoas habilitadas para gerir instituições.

O que é preciso então?
Que haja um acompanhamento da parte da Segurança Social, que entrega o dinheiro. Não é só entregar e ver se o serviço está bem feito. Mas também, em alguns casos, verificar se, ano a ano, pelas contas que a instituição apresenta, a gestão está a ser bem feita, para não haver surpresas desagradáveis em relação ao futuro.

Na parte que me compete, todas as instituições que me apresentarem as suas contas, é verificar e comentar o estado da instituição, elogiar quem tem situação mais desafogada e chamar a atenção para quem tem prejuízos consecutivos sem alteração na gestão.

A Segurança Social devia ter um papel mais activo na auditoria destas instituições?
Penso que já o faz, mas às vezes faz numa exigência, numa fiscalização. Não é isso que estou a pedir. Estou a pedir ajuda de acompanhamento. Na instituição que referi, a Segurança Social portou-se muito bem, porque faz parte da comissão de acompanhamento. Não se pôs do lado de fora. Também é preciso elogiar quando faz bem.

Deveria ser assim para todos os casos?
Sim. Se é uma situação difícil, devia entrar, é do interesse da comunidade. Existem dois tipos de dificuldade. Um deles é a mudança de política, a outra é a dificuldade de gestão de pessoas menos habilitadas para os cargos. Pode acontecer.

Se a Segurança social deve ter um papel mais activo, que pode fazer a Igreja? Não deve ser um primeiro nível de controlo sobre as suas próprias instituições?
E fazemos tudo o que é possível fazer para manter estas instituições ao serviço, mas se a certa altura se muda o paradigma por parte da Segurança Social ou do Estado, podemos criar uma situação de menos capacidade de resposta. Se nos obrigarem a ter meios próprios de rendimento para responder às necessidades das populações, nós não temos.

Muitas destas instituições cresceram para dar resposta a necessidades mas depois não têm sustentabilidade financeira. É isso?
Isto já é velho. No passado através da igreja surgiu o Património dos Pobres. Há paróquias com dezenas de residências entregues a famílias pobres com dificuldades. A Igreja manteve, zelou, acompanha e está lá. Estão-lhes entregues. Agora, a Igreja que fez isto aos pobres tem de pagar IMI das casas. Como vai pagar? Tem de pagar.

O que vai acontecer?
Vai parar ao Estado, não? Se a Igreja não pode pagar o IMI, os pobres também não, só há uma maneira: o Estado toma conta das casas, claro. Já que toma conta das casas faça também a gestão dos pobres, da aproximação, do cuidado aos pobres. Não estava previsto ajudar os pobres e ter de pagar ao Estado para ajudar os pobres.

Na semana passada, o Presidente da República manifestou vergonha pela pobreza que ainda existe no país pelas desigualdades que Portugal ainda tem. Como bispo e responsável pelo sector da pastoral social, revê-se nestas declarações?
Revejo e deve constituir uma preocupação a nível político, porque há coisas que não se resolvem apenas com boa vontade. Têm de ser pensadas ao nível político. Porque se há melhorias económicas e o risco de pobreza [ou exclusão social] se mantém elevado, de 23,3%, o que corresponde a 2,4 milhões de pessoas, é muita gente em Portugal que corre este risco. O Presidente fez muito bem em mostrar essa preocupação e foi talvez a sua intervenção que fez mais eco, se não ficava do lado estatístico. As estatísticas passam a ser coisa banal.

E como se combate?
São medidas de carácter político e também uma cultura. Não pode ser só o mérito, as pessoas podem não ter a mesma habilitação, a mesma formação, mas têm uma família para criar. Não é pelo mérito, é pela necessidade. Precisamos de uma filosofia de trabalho e dedicação, mas em relação ao pagamento do trabalho tem de haver dignidade. O abandono das pessoas à sua pobreza soa a indiferença, é dizer que “o problema é deles que não querem estudar, não querem trabalhar”, é uma indiferença perigosa. Porque quem é agastado e abandonado não tende para fazer bem. As pessoas quando são descartadas vão fazer mal.

Tomou os jovens como prioridade na sua diocese. O que está a fazer por eles?
Encontrei em Santarém uma realidade que me espantou. Pelo Carnaval, 600 jovens de Santarém foram a Taizé, numa actividade promovida pelos professores de aula de religião e moral. Foi o maior grupo português a ir a Taizé.

Para além dos escuteiros, temos um movimento de jovens, único no país, que é o Movimento de Encontros Fraternos, que junta centenas de jovens, com dois a quatro encontros por ano, em que fazem novos convívios.

Temos hoje uma realidade juvenil muito diferente da de há 40 anos. Era muito mais afastada em termos de valores e de fé, muito mais. Em Portugal considerou-se há 40 anos que a pastoral universitária tinha acabado, hoje são grupos de jovens universitários que andam à procura de padres para os acompanhar nas missões que querem.

Um dos assuntos em foco em relação à Igreja são as orientações de cada diocese para os recasados. Já deu as orientações para a sua diocese?
Não dei. Tenho pena que o assunto família se tenha fixado e o tema de Amoris Laetitia se tenha fixado apenas no oitavo capítulo [da exortação apostólica do Papa Francisco sobre o amor em família]. Deixa um trabalho marcado com essa dimensão como sendo a única e, porventura, desmobiliza a Igreja para aquilo que é preciso fazer em termos de pastoral da família. Ficamos a discutir qual o bispo que tem mais razão por causa dos recasados e esquecemos o que vamos fazer com os jovens, que querem casar, com os casais novos, qual a ajuda, o acompanhamento que lhes damos. Vamos esperar que cheguem todos a recasados para depois cuidar?

Tem grande experiência como pároco.
A experiência foi essa, do acolhimento e da proximidade. O problema é as pessoas sentirem-se rejeitadas. Auto-excluem-se. A Igreja tem porta aberta. Quando o padre dá a bênção dá para todos.

Tenho muita pena porque [Amoris Laetitia] é um documento muito bom. Se queremos ajudar, temos inspiração para uma pastoral da família alargada. Voltamos aos jovens: os jovens têm estímulos à frente para pensar no casamento? Há consideração pela família? É valorizada na nossa sociedade? Para a Igreja, é. Os pais educam os seus filhos em família, estão a educar os cidadãos deste país e desta sociedade. Os pais fazem um trabalho de colaboração enorme ao educarem os seus filhos. A família é um bem para a sociedade. É a qualidade humana da sociedade.

E qual o estímulo da Igreja?
É ir por aqui. É valorizar a família e estimular os jovens. Se não tivesse encontrado padres felizes nunca me teria metido por este caminho. Se os jovens não encontram casais felizes a viver a sua vida com sentido de realização como é que se vão meter nesse caminho?

E em relação aos recasados qual é a sua orientação?
Acho bem que se faça o acompanhamento que está a ser indicado, individual. Cada caso é um caso. Se a resposta ficar no sim ou não, estarmos a banalizar os sacramentos, mas fazendo um acompanhamento podemos concluir se há nulidades, o que houve no percurso, o sofrimento, a seriedade da questão. É possível ir integrando as pessoas. A integração é sempre possível.

Nestes anos de Papa Francisco, há grupos que o defendem e outros que o criticam. Até o acusam de heresia. Como vê estes cinco anos?
Vejo muito positivamente. Pode ser que o Papa Francisco seja considerado um desestabilizador. Para mim, é o exemplo do pastor interessado e desestabilizador e bem. Porque uma igreja que se fecha na sua verdade não cresce e não dá testemunho. O Papa tem razão quando pede a descentralização. A comunidade cresce quando faz missão com os olhos de Cristo. Não se pode dizer que o Papa Francisco não tem espiritualidade. Ele parte daí.

A igreja parece dividida entre progressistas e tradicionalistas?
Parece, mas o Papa não se incomodará com isso. Precisamos de considerar que a Igreja é una, mesmo que pareça uma manta de retalhos, é sempre a mesma, e não é possível ter uma Igreja numa unicidade de apresentação, toda igual, todos a celebrarem da mesma maneira. Temos é de fazer o discernimento em cada continente, em cada conferência episcopal, em cada bispo, fazer um discernimento para dar sinais de que estamos interessados no bem dos homens e na glória de Deus. A glória de Deus é o bem dos homens. Um padre ou um bispo é sacerdote porque presta culto a Deus, mas é pastor porque conduz o povo de Deus. As duas dimensões têm de estar presentes.

São essas duas perspectivas que dividem a conferência episcopal portuguesa?
Não me parece que em Portugal exista essa divisão. Existem sensibilidades, cada um de nós tem a sua, mas não existe divisão.

No mundo, percebe-se que há pessoas que se refugiam mais na liturgia e outras que são mais levadas a cuidar do próximo. Desde que nos encontremos na mesma eucaristia é bom.

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