“Bullying” alimentar: a única cura para as alergias é a informação

O novo filme "Peter Rabbit" tem gerado alguma controvérsia porque a personagem principal usa "bullying" alimentar contra o vilão. O Peter Rabbit é ficção e a reacção alérgica do Mr. McGregor também, mas a alergia alimentar e a anafilaxia não são

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O mais recente filme Peter Rabbit — personagem clássico dos livros infantis de Beatrix Potter — tem gerado uma onda de controvérsia. O motivo? Acusações de incitar o bullying contra quem tem uma alergia alimentar.

Numa cena do filme de animação, o coelho e os seus amigos atacam um humano, Mr. McGregor, que os tenta expulsar da sua quinta com amoras silvestres sabendo que este é alérgico às mesmas. A este ataque sucede-se uma reacção anafilática e uma auto-injecção de adrenalina, que é, na verdade, o único tratamento disponível em caso de anafilaxia, uma reacção sistémica e generalizada que, numa questão de minutos, pode ser fatal.

Esta cena causou indignação com uma grande repercussão pública e as opiniões têm divergido. De um lado, pais e familiares de crianças com alergia alimentar grave que consideram que esta abordagem da alergia alimentar num filme para crianças é uma irresponsabilidade social que pode levar a “brincadeiras” de risco entre crianças. Do outro, espectadores que alegam tratar-se de uma reacção exagerada fruto das indignações da moda nas redes sociais e que argumentam que muitas outras situações, igualmente passíveis de serem condenadas, têm existido ao longo dos anos em filmes, desenhos animados e videojogos.

O filme vem dar ênfase a algo mais importante do que à discussão sobre se as redes sociais se tornaram redes de indignação ou sobre se os actuais modelos de educação e acompanhamento parentais são suficientes para promover o discernimento das crianças face à realidade versus ficção ou certo versus errado. O filme faz-nos reflectir sobre o perpetuar de conceitos errados sobre a alergia alimentar que, em última instância, podem culminar em reacções fatais.

No mesmo segmento do filme é sugerido que as alergias alimentares são “inventadas” pelas pessoas para “chamar à atenção”. E apesar de se tratar “apenas da frase de um filme”, espelha a real opinião de muitas pessoas. Algo que é erradamente legitimado pela completa falta de informação sobre a doença e/ou pelos inúmeros casos de indivíduos que dizem ser alérgicos e que caem sistematicamente em inconsistências, dando azo a caricaturas e a generalizações. Para ambas as situações, a solução é a mesma: informação.

A alergia alimentar é um problema de saúde pública cuja prevalência e persistência têm aumentado nos últimos anos. Não existe cura e o tratamento passa por evitar completamente, até ao mínimo vestígio, o alimento a que se é alérgico e tudo o que o contem. Por isso, quem tem alergia ao leite, não pode comer bacalhau com natas ou bolo de chocolate e quem tem alergia ao peixe é alérgico, não só à pescada cozida, mas também aos douradinhos — podendo até ter uma reacção apenas por inalação de vapores durante a cozedura. Não se trata de uma preferência alimentar nem tão pouco de uma moda; trata-se de uma doença de difícil gestão, com enorme impacto na qualidade de vida e que pode ser fatal.

Podemos realmente esperar que as crianças percebam que não se pode forçar o contacto da pessoa alérgica com o alimento (em alguns casos basta o contacto com a pele para desencadear a reacção), quando os adultos relevam igualmente a gravidade da situação?

O Peter Rabbit é ficção e a reacção alérgica do Mr. McGregor também, mas a alergia alimentar e a anafilaxia não são. E enquanto não se apostar na consciencialização e informação, ambas farão parte do enredo de filmes da vida real, com histórias e finais não tão felizes.

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