O martírio da Venezuela

Pensa-se, e não se crê: é este socialismo que a nossa esquerda protege e ao mesmo tempo esconde?

Tendo lido mais uma notícia no Guardian Weekly sobre a tragédia venezuelana, acerca da qual toda a esquerda portuguesa, com especial destaque para o Bloco e o PCP, guarda o mais infame silêncio, resolvi pegar num escadote e extrair de uma das prateleiras mais altas da minha biblioteca um opúsculo que o saudoso dr. Álvaro Cunhal publicou em 1974 (Ed. Avante), A superioridade moral dos comunistas.

Duas ou três pérolas bastam para ficarmos conversados sobre a massa de que se faz essa alegada superioridade: “Os comunistas não se distinguem apenas pelos seus elevados objectivos e pela sua acção revolucionária. Distinguem-se também pelos seus elevados princípios morais. [...] A moral dos comunistas é contrária e superior à moral burguesa.” Esta só inspira baixeza: “Individualismo e egoísmo ferozes, indiferença pela sorte dos seres humanos, rapacidade, venalidade, completa falta de escrúpulos.” Já aquela só inspira elevação: “a combatividade, a determinação, o espírito de organização, a coesão, a solidariedade, o hábito da ajuda recíproca, a disciplina, a abnegação, a capacidade de sacrifício”, etc. “A moral comunista [...] serve a luta para pôr fim ao capitalismo e à exploração do homem pelo homem.” É portanto em simultâneo um produto e um condimento da luta de classes.

Até aqui estamos no domínio do cómico, mas permanece misterioso o motivo pelo qual se deve apoiar incondicionalmente regimes abjectos, que primam pelo escárnio a que votam os mais elementares direitos humanos. E, porém, à medida que a leitura progride, a névoa dissipa-se, e a verdade irrompe em todo o seu esplendor comunista. 

A Revolução de Outubro transformou numa “aquisição histórica” o que a teoria já deixava prever. Uma aquisição com um “poder de atracção e de convencimento mil vezes superior ao da mais bela das utopias”. A realidade superou todos os sonhos! E daí? Daí, “onde quer que se oponha o socialismo por que se luta ao socialismo tal como existe enfraquece-se e compromete-se a força ideológica, política e moral do proletariado e da sua vanguarda revolucionária”. É, em toda a parte, extraordinariamente motivador o saber-se que “se luta por um regime social que é já uma realidade em numerosos países” (a URSS, os países soviéticos tutelados por Moscovo), e não por uma simples miragem.

Ou seja, os comunistas (leninistas, trotskistas ou maoístas), no momento em que abraçaram a luta contra o capitalismo e o imperialismo, selaram um pacto de sangue, assinaram um contrato de cumplicidade com todos e toda a espécie de lutadores em prol da libertação do homem. Mesmo quando apenas apregoam e não lutam por coisa nenhuma, a não ser, com característica abnegação proletária, pelo seu próprio domínio pessoal. Como o palhaço sanguinário que preside ao dramático destino dos venezuelanos.

Na Venezuela, falta comida, faltam remédios, faltam empregos, faltam coisas básicas de uso diário (como papel higiénico, por exemplo). Falta liberdade, falta democracia e falta respeito pelos mais elementares direitos humanos. Segundo o FMI, a inflação atingirá este ano a cifra fantasmagórica dos 13.000%! O que dava para comer ao almoço já não dá para comer ao jantar. Nas fronteiras da Colômbia e do Brasil lavra uma crise de refugiados que faz lembrar a que se viveu na Europa em 2016. Só na segunda metade de 2017, o fluxo oficial de refugiados abrangeu mais de meio milhão de pessoas; se contarmos com a imigração ilegal e clandestina, o número dispara para um milhão. Pessoas há que matam uma vaca à pedrada para lhe arrancar pedaços de carne. O abate de cavalos para comer tornou-se rotineiro. Há barcos de pesca assaltados na mira de roubar sardinhas. Comer duas vezes ao dia é um luxo exorbitante. Os venezuelanos perderam em média 11kg de peso em relação a 2015. Em Cúcuta, uma cidade fronteiriça da Colômbia que se tornou um dos principais pontos de recepção de refugiados, vendem-se alianças de casamento, e até cabelo humano, para arranjar alguns vinténs. A insegurança é total: multiplicam-se os roubos, assaltos e outros crimes e violências. Em muitas cidades, sair à noite é um risco enorme, que só se enfrenta por grande necessidade e com grande coragem. Toda a contestação política é reprimida pela tropa montada em carros de combate, e imputada a agentes do imperialismo americano. As prisões são arbitrárias, a tortura é um método corrente de interrogatório policial. Adoecer, ter o azar de ficar doente, é uma perspectiva que gera pânico. Nicolás Maduro, a um tempo palhaço, ditador e tirano, rejeitou categoricamente a ajuda humanitária — comida e medicamentos — que lhe foi oferecida pela comunidade internacional. Um país orgulhosamente socialista não necessita, por definição, de ajuda humanitária. Estados há que torneiam o bloqueio enviando remédios a coberto de prescrições médicas individuais.

Finalmente, a cereja em cima do bolo: em 2017, Maduro vendeu à Goldman Sachs (!) a dívida da empresa Petróleos da Venezuela, detida pelo banco central de Caracas, no valor de 2,8 mil milhões de dólares... Mas o gigante financeiro global apenas a avaliou em 856 milhões de euros, ou seja, 31% do valor facial dos 2,8 mil milhões de dólares em que essa dívida estava cifrada pelas autoridades venezuelanas! Enfim, também a Maduro falta alguma coisa — dinheiro. Ele lá saberá quanto precisa de pagar aos esbirros que o defendem e sustentam no poder. Pensa-se, e não se crê: é este socialismo que a nossa esquerda protege e ao mesmo tempo esconde? É.

Mas a esquerda não arranjará por aí um cortejo fúnebre nocturno, com velas, cânticos e cordões humanos de luto pelo martírio da Venezuela, tal como arranjou um cortejo festivo para comemoração da independência de Timor Lorosae? Não. Porque “onde quer que se oponha o socialismo por que se luta ao socialismo tal como existe enfraquece-se e compromete-se a força ideológica, política e moral do proletariado e da sua vanguarda revolucionária”. Na América Latina, em países como a Venezuela de Nicolás Maduro, a Bolívia de Evo Morales, o Equador de Rafael Correa, a Nicarágua de Daniel Ortega, o “socialismo bolivariano” é o “socialismo tal como existe”.

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