A fiscalidade automóvel na encruzilhada

No campo da mobilidade eléctrica, nada nos preparou para o que agora se avizinha.

Agora, é à séria. Depois de anos em compasso de espera, amparado em subsídios públicos e com sucesso limitado, o automóvel eléctrico parece pronto a tomar o mercado, ao mesmo tempo que a mobilidade sofre toda uma nova revolução. O line-up dos grandes fabricantes para os próximos anos oferece plug-ins para todos os gostos, alguns abandonam os motores de combustão, todos apostam no car-sharing e nos serviços por assinatura. O automóvel torna-se um gadget, com ciclo de vida curto, a usar como serviço mais do que a ter como um bem.

A nossa fiscalidade foi antecipando algumas destas mudanças e testando os desafios da mobilidade eléctrica, com avanços, recuos e oportunidades perdidas. Convertemos a tributação automóvel ao CO2, deslocámos a carga fiscal da compra para a circulação, testámos esquemas de incentivo, contrariámos a dieselização do parque. Mas nada nos preparou para o que agora se avizinha.

A questão mais urgente que nisto se levanta está na base de cálculo da tributação automóvel. ISV e IUC assentam na cilindrada e emissões de CO2, que se têm vindo a reduzir constantemente ao longo dos últimos anos. Ambos os impostos dão tratamento de favor aos híbridos e isentam por inteiro os 100% eléctricos. Em 2008, o ISV valia 3% de toda a receita fiscal; ao ano de 2018 não vale 2% sequer. Importa decidir o que fazer destes impostos, a querer manter-se alguma pressão sobre o transporte individual e prevenir o colapso desta fonte de receita.

Os estímulos a híbridos e 100% eléctricos não se esgotam no IUC e ISV, porém. No IRC, incentiva-se a sua compra pelas empresas reduzindo as taxas autónomas para metade quanto aos híbridos e eliminando-as por inteiro quanto aos 100% eléctricos, poupando-os deste modo uma tributação que poderia chegar aos 35%. No IVA, admite-se a dedução integral do imposto suportado com a compra de híbridos e de 100% eléctricos, poupando as empresas a um encargo de 23%. Tudo isto teve e tem ainda a sua razão de ser. Mas importa definir o que é prioritário e tem maior retorno, sendo certo que os incentivos fiscais não podem ser os mesmos quando o eléctrico era um capricho e quando se torna mainstream.

Olhando mais longe, importa pensar como se deve aplicar o imposto sobre a electricidade ao sector dos transportes, como partilhar competências e receitas entre Estado e autarquias neste novo quadro e como adequar a fiscalidade a um modelo de negócio em que o automóvel se torna menos um bem que um serviço. Num quadro em que a compra individual ceda terreno a esquemas de assinatura ou partilha, os impostos tornam-se mais fáceis de gerir e mais facilmente se modelam comportamentos. É mais fácil actuar sobre um punhado de grandes empresas e plataformas de mobilidade que sobre milhares de consumidores.

Mas quanto a todos estes perigos e oportunidades há que saber o que queremos fazer e convém fazê-lo antes que os acontecimentos nos ultrapassem. O Roteiro para a Neutralidade Carbónica é o pretexto ideal para começar o debate, pensar a fundo e buscar algum consenso político. O Orçamento do Estado para 2019 é uma boa oportunidade para ir testando algumas soluções. Pé na tábua, sempre em frente.

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