Dorival Caymmi na barca de Lio

Como é que as canções do mestre baiano foram parar à voz de uma estrela pop luso-belga? Pelo lado da melancolia. A surpresa Lio Canta Caymmi chega hoje às lojas nacionais.

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Lio com Jacques Duvall em Lisboa Jane Who/Crammed Discs
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Jane Who/Crammed Discs

A ideia foi de Jacques Duvall, músico e letrista belga. Um dia descobriu uma compilação de canções de Dorival Caymmi interpretadas por vários cantores brasileiros e apaixonou-se “de imediato por aquelas melodias maravilhosas, aquela deliciosa sofisticação na mais desarmante simplicidade.” Entusiasmado, deu-as a ouvir a um guitarrista seu amigo, o autor e compositor francês Christophe Vandeputte, conhecido por Kriss Electro. Foi amor à segunda vista. Sim, era preciso dar voz àquilo. E que voz? A de Lio, evidentemente.

Quem é Lio? Recuando pouco mais de meio século, era ainda a portuguesa Vanda Maria Ribeiro Furtado Tavares de Vasconcelos, nascida em Mangualde em 17 de Junho de 1962 e emigrada para a Bélgica com a mãe (recém-separada) em 1968. Foi quando trabalhava numa Mediateca belga, a ajudar a mãe, que Jacques Duvall intuiu que podia estar ali uma possível futura cantora. Compôs então com Jay Alanski uma canção chamada Le banana split, que ela gravou. As grandes editoras recusaram editá-la e uma mais pequena arriscou e ganhou: o single vendeu dois milhões de cópias e a vida de Vanda, já afrancesada para Wanda e feita Lio por imperativos artísticos, levou uma reviravolta completa. Nascia ali uma estrela pop, com carreira na música mas também no cinema, na moda e na televisão.

Lio já gravara um disco dedicado a Jacques Prévert (Lio Chante Prévert, 2000) e tem na calha um outro dedicado a Brassens. O mestre baiano Dorival Caymmi (1914-2008) veio desassossegar-lhe a voz, no meio dos dois. “Quando Jacques me falou do Caymmi, disse: não conheço.” Mas quando recebeu as canções, viu que conhecia várias. “E algumas de cor, pois eram do disco Gal Canta Caymmi que uma tia minha, hospedeira na TAP, me fez descobrir aos 14 anos. Outras, conhecia-as sem saber que eram dele. São músicas que uma pessoa canta, que fazem parte da nossa vida mas sem saber quem é o autor.”

Brasil em Portugal

Foi ainda em Portugal que Lio teve o primeiro contacto com o Brasil. “Eu sempre adorei música brasileira. As minhas lembranças de música em Portugal, para além dos ranchos que vinham para as feiras populares e para os bailes de bombeiros, era a música brasileira que se ouvia em minha casa: Nara Leão, Bethânia, Chico Buarque. Na casa da minha mãe não se ouvia Amália Rodrigues nessa época, os estudantes ainda conotavam o fado com o regime de Salazar, ela só começou a ouvir a Amália quando foi para a Bélgica.” Com o Brasil num recanto antigo da memória, Lio aceitou de bom grado a proposta de Jacques Duvall para gravar Lio Canta Caymmi [o título ficou assim mesmo, em português]. “Soou logo como uma coisa sentimentalmente muito verdadeira. E foi uma oportunidade. Várias vezes pensei como é que poderia cantar em português, já pensei cantar Sérgio Godinho, porque adoro o Sérgio, mas o que é que eu teria a propor? Outros dizem: porque é que não gravas fados? Porque não sou muito legítima a cantar fados, não tenho aquela voz. Ora o Duvall propôs-me um projecto ao qual sentimentalmente posso responder. Porque eu sou uma artista de corpo, sou mulher, não é uma extrapolação intelectual estética que me desencadeia o andamento artístico. Portanto, foi muito bom eu tentar isso.”

O que se ouve em Lio Canta Cyammi é uma voz suave, de toque ligeiramente sensual, envolta em arranjos simples, pop, alguns quase ingénuos, um misto de alegria e tristeza. “Quando já tínhamos as canções, a maquete, eu achei o disco muito melancólico. Ora o Caymmi não era só isso. Então propus incluir duas canções praieiras, Maracangalha e Vatapá. Mas Duvall disse ‘não’ e eu entendi que era a melancolia que ele queria e eu podia dar-lha neste disco. Ele andava triste, eu também (era uma época um pouco triste para nós os dois), e a música brasileira consegue ir ao fundo da dor com uma abertura certa para o futuro e para uma possível melhoria, dentro da música. E lá fomos nós.”

Uma forma de catarse

Há outra coisa, que Lio sublinha: “Estas canções são as que ele escreveu no Rio de Janeiro, mais urbanas que baianas e muito mais cinematográficas. Sente-se que ele estava a ver o Pão de Açúcar.” Exemplo disso é Sábado em Copacabana, a segunda do disco. As outras onze são: Não tem solução, Doralice, É doce morrer no mar (com Jacques Duvall a cantá-la com Lio), Nunca mais, Tão só, Você não sabe amar, Nesta rua tão deserta, Nem eu, Valerá a pena, Samba da minha terra e Quem vem pra beira do mar.

Se Duvall concebeu o disco, a produção e arranjos são de Christophe Vandeputte  (ou Kriss Electro): “É um músico de Valenciennes, uma zona perdida do norte da França, bem longe de Caymmi e da Bahia, e há uma certa candura, uma vontade genuína de fazer o melhor. Vê-se que há certos sons que saem de coisas pouco elaboradas, mas são feitas com um tal sentimento e uma tal verdade que isso acaba por ser o mais importante.”

O disco foi também, para Lio, uma forma de catarse. Separada, com seis filhos (de idades entre os 30 e os 14 anos) de que conseguiu “sempre cuidar”, nos estudos e no seu futuro, diz: “Há momentos em que a pena mata. Nós dizemos que não tem importância, que está tudo bem, mas não está. É bom quando temos força para alguma auto-indulgência. Por exemplo: tenho pena de ser uma mulher só, de não ter conseguido guardar os homens sempre na esperança de encontrar outro melhor, sem pensar muito nos reflexos que isso teria para as minhas crianças, pena de ter sido muito egoísta. Ora o Caymmi também fala dessa dor mas de uma forma que consegue tranquilizá-la. E isso é muito bom.”

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