O silêncio ensurdecedor de Emma, a adolescente que agita a América

Chamaram-lhe o “maior silêncio da história do protesto social dos EUA” e fez uma plateia de centenas de milhares aplaudir e chorar. A "geração dos tiroteios" é vista como uma esperança na América. Quem é Emma González, a cubana bissexual de 18 anos que se fez rosto da luta adolescente contra as armas?

Menos de 60 segundos de palavras emocionadas e depois silêncio. Um ensurdecedor silêncio coberto de lágrimas que se espalharam à plateia, que aplaudiu emocionada, até se cumprirem seis minutos e 20 segundos. Os mesmos seis minutos e 20 segundos que passaram desde o momento em que um homem começou a disparar na escola de Parkland, na Flórida, e fugiu. O mesmo tempo que roubou a vida a 17 jovens, feriu 15 e mudou para sempre a vida de toda a comunidade de Douglas, nos EUA. Emma González, estudante e sobrevivente do massacre do dia 14 de Fevereiro, subiu ao palco durante a iniciativa March for Our Lives, no passado sábado, 24 de Março, e disse o nome das vítimas. Depois calou-se, naquele que o analista americano David Corn baptizou como o “maior silêncio da história do protesto social dos EUA”.

Foram menos de seis minutos de silêncio. E, no entanto, iam comentando as pessoas que se juntaram ao protesto em Washigton, pareceram uma eternidade. Agora, desafiou Emma González no Twitter horas depois, “imagine quanto tempo teriam sentido se fossem realmente seis minutos ou como seria se, durante aquele silêncio, tivesse de se esconder [para não ser atingido pelo atirador]”.

Emma González estava lá. Foi uma dos adolescentes que tiveram de se esconder — e uma dos que ficaram irremediavelmente marcados por aquele momento. Na América, ela e outros sobreviventes não aceitam que a história continue a sua narrativa trágica. O ataque em Parkland foi o 18.º a acontecer no país desde o início do ano. E então eles uniram-se contra a política de Donald Trump, o lobby da National Rifle Association (NRA) e a permissiva lei de posse de armas.

Têm dado nas vistas com várias iniciativas, o debate acesso, manifestações. E até a revista Time lhe dedica a capa neste mês de Abril: “A geração que se habituou aos tiroteios nas escolas está farta”. Emma é um dos mais destacados símbolos deste movimento de teenagers. Mas, afinal, quem é a estudante activista de cabelo rapado?

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Emma durante o discurso no March for Our Lives

“Tenho 18 anos, sou cubana e bissexual. Sou tão indecisa que nem consigo escolher a minha cor preferida e sou alérgica a 12 coisas. Desenho, pinto, faço croché, costuro, bordo — qualquer coisa produtiva que possa fazer com as minhas mãos enquanto vejo Netflix”, escreveu Emma numa espécie de manifesto publicado na Harper's Bazaar no final de Fevereiro.

E continuou: “Mas já nada disto interessa. O que importa é que a maioria do povo americano se tornou cúmplice de uma injustiça sem sentido que ocorre à sua volta. O que importa é que a maioria dos políticos americanos se tornou mais facilmente influenciável pelo dinheiro do que pelas pessoas que votaram neles. O que importa é que os meus amigos estão mortos, tal como centenas e centenas de pessoas em todo o país.”

O pai é advogado de uma empresa de segurança cibernética e fugiu de Cuba em 1968, a fintar a regime de Fidel Castro. A mãe é professora de matemática. No programa 60 Minutos, da CBS, a progenitora recordou aos espectadores que a filha é apenas uma menina — apesar da visibilidade que está a ter e da força que aparenta. E falou do incondicional apoio dos pais às decisões da filha, algumas delas difíceis, como o assumir da sua sexualidade. Outras mais simbólicas, como a resolução de rapar o cabelo, uma decisão da qual Emma falou no projecto Humans of Stoneman Douglas (inspirado no Humans of New York) a 22 de Janeiro: ter o cabelo comprido era um sofrimento, sobretudo no Verão, e a jovem sentia-se mais livre com o novo corte. Para convencer os pais, apresentou-lhe num PowerPoint uma defesa da sua decisão: gastar menos champô foi um dos argumentos usados.

Emma — uma das líderes do movimento #NeverAgain — foi durante três anos presidente de uma associação de defesa dos direitos dos homossexuais dentro da escola. E depois da tragédia em Parkland tornou-se o rosto da luta contra a NRA, uma batalha repleta de barreiras que a jovem promete não deixar cair. Porque “os adultos estão a comportar-se como crianças” e alguém tem de agir. “Lutem pelas vossas vidas antes que tenha de ser alguém a fazê-lo por vocês”, disse no fim do discurso de sábado.

“Eles foram treinados para este momento”

O protagonismo dos estudantes de Stoneman Douglas pode ter uma explicação. Segundo uma reportagem da Slate, eles são produto de um sistema de ensino público popular nos anos 50 que quase desapareceu nos EUA. Lá, incentiva-se, por exemplo, um “programa de debates” e ensina-se os alunos a falar em público: “Eles foram treinados para este momento”.

Naquele dia inesquecível em Parkland, enquanto Nikolas Cruz, de 19 anos, disparava sobre os amigos no auditório da escola, Emma procurava saber o que estava a acontecer no Google News. E à medida que se apercebia da tragédia, ia reconfortando os colegas, que minutos depois viram as portas abrirem e a ordem de “fugir” accionada.

A partir dali, nada voltaria a ser como dantes. E Emma não aceita calar a revolta ou deixar o destino nas mãos de outros, mesmo perante os muitos insultos, ameaças e tentativas de difamação (a última notícia falsa dizia que Emma tinha rasgado a Constituição americana) de que tem sido vítima. Ao presidente americano também já respondeu, depois deste justificar o acto do atirador de Parkland com distúrbios mentais e ter sugerido que os professores andassem armados para evitar novos episódios: “Não é preciso ser psicóloga para perceber que revogar esta lei foi uma ideia muito estúpida”, disse num discurso público ao referir-se à reprovação de uma lei assinada por Obama, que proibia a venda de armas a pessoas com distúrbios mentais. E disse mais: “Se o Presidente vier dizer de novo que esta foi uma terrível tragédia, que nunca deveria ter acontecido, e continuar o seu discurso de que nada pode ser feito, terei de lhe perguntar quanto dinheiro ele recebe da indústria das armas.”

É uma verdadeira guerra pela paz. Mas ver centenas de milhares de pessoas unidas em Washington numa iniciativa organizada por adolescentes é lido por alguns como um sinal de mudança. Será a “geração dos tiroteios” capaz de mudar os EUA?

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