O arquitecto vai nu

Onde está o olhar do “outro” na arquitectura? Sofremos de miopia arquitectónica?

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Dmitri Popov/Unsplasj

A arquitectura das cidades constitui não apenas palco, mas evidência construída e vivida da desigualdade. Este cenário coincide — mas não por pura coincidência — com a realidade profissional da arquitectura. Vários estudos indicam que a exclusão não só prevalece como tem vindo a aumentar no exercício da profissão. A pouca permeabilidade ao “outro” — ou a todos aqueles que pelo seu género, classe, cultura, orientação sexual, deficiência, etc., se encontram sub-representados — é um cenário muitas vezes acompanhado de um distanciamento de realidades exteriores à prática. “Miopia arquitectónica” é a expressão usada num texto de Nikos Salingaros intitulado The architect has no clothes.

O arquitecto vai nu numa sociedade onde o modelo, a personagem do starchitect (predominantemente masculina e ocidental) é cada vez mais um produtor de media, em vez de um produtor de edifícios. O excesso e redundância de imagens de arquitectura ocorre numa cultura visual onde somos simultaneamente produtores e consumidores cansados dessas imagens. O cansaço do olhar face à produção em massa de imagens é já uma velha questão. Contudo, o olhar que Benjamin encontrou na poesia de Baudelaire — de olhos que já não conseguem ver — ganha hoje novos contornos.

Depois da sociedade do espéctaculo de Débord e do espectador emancipado de Ranciére, habitamos uma realidade onde todos somos, aparentemente, actores. No entanto, neste enorme palco digital, a cultura normativa prevalece e as desigualdades adensam-se — nomeadamente face ao que está à margem da tecnologia. Refiro-me não só às pessoas, mas num sentido mais amplo, às realidades que estão de fora do digital. Onde estão os outros seres vivos, os cheiros das flores, nós próprios para além do (áudio)visual?

Baseada numa visualidade ocular, a hegemonia visual na arquitectura abre as portas a uma crise de visibilidade, que poderá ser uma progressiva cegueira, tanto por falta de visão sobre regiões sombrias da realidade, como por sobre-exposição de outras. A renderização foto-realista corresponde a um cenário de hiper-realidade — um simulacro de Baudrillard — diluindo a separação entre representação e objecto. Face a esta realidade surgem novos posicionamentos estéticos, que procuram desconstruir as hegemonias presentes na cultura tecnológica, contribuindo com “outros” olhares. Olhares como os do Fala Atelier e do KGDVS office parecem propôr um regresso à pintura no digital, mas também uma recuperação da dimensão háptica e onírica usando a tecnologia. Há esperança.

O olhar do “outro” tem sido reclamado no âmbito da arte, sobretudo pelo discurso queer e pós-colonial. Personagens como Judith Butler já são familiares ao público. O colectivo de artistas lisboeta Pipi Colonial surge como resposta aos discursos normativos. Paralelamente, assistimos ao emergir de uma perspectiva pós-humana e pós-antropocêntrica — uma visualidade que inclui o olhar de outras espécies e sobre outras espécies —, como na brilhante peça de Mariana Silva O olho Zoomórfico/Camera Trap. O homem já não é a medida de todas as coisas e o excepcionalismo humano é questionado, não só pela natureza, mas pela tecnologia. Contribuições como as de Donna Haraway foram imprescindíveis: o Manifesto Cyborg contesta a separação rígida entre homem-máquina-animal, propondo-nos a construção de afinidades em vez de identidades delimitadas.

Convoquemos para a arquitectura “outros” olhares, impedidos de exercer influência. Olhemos atentamente para fora e procuremos posicionar-nos, não só através do nosso olhar, mas do olhar do “outro”.

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