“Ficámos todos um pouco mais órfãos”

Ana Salazar, João Pinharanda, André e. Teodósio, Sérgio Hydalgo, Pedro Santos e Pedro Ramos recordam Manuel Reis

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Exposição O Dia pela Noite, no Lux miguel manso

Ana Salazar (designer de moda)

“[A morte de Manuel Reis] deixa-nos um vazio profundo. Foi um visionário extraordinário, como há poucos, que contribuiu imenso para mudar atitudes e combater preconceitos na vida portuguesa. Fará muita falta. Criou espaços como ainda não há outros em Portugal, desde a Loja do Atalaia e as suas peças ao Frágil, ao Lux, à Bica do Sapato. Era realmente um homem único, com um extremo bom gosto.”

“O Frágil era um local de reunião, era o local onde todos se encontravam. E tinha coisas extraordinárias, como os convites, que eram completamente loucos. Lembro-me de um em que estava a Margarida Martins completamente nua, sentada de costas num sofá. Achei brutal, sobretudo naqueles anos e em Portugal. Nessa altura, fez o que fez contra tudo e contra todos.”

“Contribuiu em todas as áreas [de expressão]. Chegou a fazer cenários para a ModaLisboa e, ainda antes dos tempos da ModaLisboa, lembro-me de colaborar com ele numa daquelas coisas que ele chamava um happening, um evento. Tinha ideias fabulosas, e mesmo o Lux, e as peças que estão no Lux, são um muito bom exemplo disso. Não era só o bom gosto, era uma pessoa que procurava sempre ir mais além.”

André e. Teodósio (actor e encenador, membro fundador do Teatro Praga)

“Dizem-me que a primeira vez que saí à noite foi no Frágil, quando os meus pais me levaram lá, tinha sete anos. Dessa noite não me lembro, mas depois de regressar a Portugal [vindo dos Estados Unidos, onde os pais trabalharam vários anos] o Manel foi muito presente na minha vida. Éramos muito amigos e estivemos sempre em contacto. Escrevi no jornal do Lux, fiz lá festas, eventos, performances, e ele mesmo deu coisas ao Teatro Praga – as cadeiras na Rua das Gaivotas [sede do grupo] –, mas fui-me apercebendo de que o maior feito dele foi ter complementado uma liberdade que o 25 de Abril não trouxe. Há aquela frase do [Coronel] Galvão de Melo, “a revolução não foi feita para putas e paneleiros” [“para prostitutas e homossexuais”, na formulação original, de 1974]; ele fez o contrário. O Manuel abria a porta a todas as precariedades e a todas as diferenças e encontrava ferramentas para que convivessem com o highbrow e com o poder. Isso trouxe uma transformação estética e cultural, trouxe uma liberdade a todos os corpos e a todas as identidades que só é possível depois do Frágil e do Lux. Ele é que devia ir para o Panteão, porque mudou mesmo a vida das pessoas e usufruímos dessa liberdade em termos afectivos e pessoais, em termos estéticos e éticos.”

"Nunca me disse 'não' a uma possibilidade de colaboração. Não havia impossíveis. Ele costumava dizer: 'Desde que não magoe ninguém, tudo é possível'. E eu fiz muitas coisas, como despir-me [com Vasco Araújo e Cláudia Jardim] numa discoteca [o Lux], coberto de chocolate e montado num cavalo branco de plástico. O primeiro texto que escrevi para a revista do Lux dizia: “Estou a escrever este texto, mas sou barrado sempre que lá vou”. Ele tinha sentido de autocrítica, muito humor e liberdade.”

“Ele inventou outro país, inventou um sítio onde as pessoas se encontram. Ninguém tinha a capacidade que ele tinha de ser um mediador invisível. Tinha a capacidade de correr riscos e de angariar nos centros de poder e privilégio ferramentas para que tudo acontecesse. A sua influência é transversal a toda a gente."

João Pinharanda (historiador e crítico de arte, comissário, actual adido cultural da Embaixada de Portugal em Paris)

“Para a minha geração, o Frágil e tudo o que o rodeava, que incluía onde se ia antes e depois, era um ponto de energia. Era onde as coisas começavam e de onde partiam. Havia a loja do Manuel [Loja da Atalaia], que íamos ver quando ainda não tínhamos dinheiro para comprar nada, mas onde havia exposições. O Frágil tinha as decorações feitas pelo Pedro Cabrita Reis ou pelo Rui Sanches, era um sítio onde a música se casava com as artes plásticas, onde as artes plásticas se casavam com a música e com a moda. Era um ponto de indecisão: uns não sabiam se queriam pintar, se queriam ser designers de moda ou outra coisa. Era um caldo riquíssimo, que foi o que fez aquele tempo, onde havia pessoas bastante mais velhas do que nós, outras mais novas. O Manuel era mais velho, a Ana Salazar e o [Eduardo] Prado Coelho também. Havia o Manuel Graça Dias, a Inês Gonçalves, o Pedro Casqueiro, da minha geração, mas também o Rui Chafes, dez anos mais novo. Esse encontro [geracional] foi uma das coisas mais ricas, e o Manuel foi conseguindo mantê-lo durante décadas. Por isso é que digo que eu aprendi a sair à noite no Frágil e as minhas filhas aprenderam a sair à noite no Lux. São 20 anos de diferença, com um ponto em comum, o Manuel Reis."

"A capacidade dele vai para além da história de ter estado ligado a qualquer coisa nos anos 1980, porque esteve ligado às coisas todas que vieram a seguir. Criou um pólo de dinamização com a sua luz, que era intensa, mas subtil. Não era luz fluorescente de novo-riquismo, como aquela das cozinhas que ofusca."

Sérgio Hydalgo (programador musical da Galeria Zé dos Bois)

“Ele sempre teve uma postura bastante idiossincrática e cultivou, de uma forma não pensada, uma persona misteriosa. O que fica é o seu trabalho. Deixa-nos a todos de luto, no sentido em que foi a pessoa mais importante para a construção de uma noite de boémia, para a construção de uma cidade, talvez de um país, mais democrática e mais livre”.

“Crescemos num país e numa cidade em que havia muito menos oferta do que a que existe em 2018. Sei o que era a Lisboa dos anos 1980 e 1990, que estava confinada a um espaço, o Bairro Alto, com umas tasquinhas e uns restaurantes. Tudo o que o Manuel Reis pensou e concretizou teve um impacto gigantesco, com o Frágil, com a [Loja da] Atalaia, com a Bica do Sapato, o Lux. Vivíamos numa cidade muito fechada e ele conseguiu do nada torná-la muito mais interessante. É por isso que crescemos com o imaginário do Frágil, porque ele conseguiu construir uma noite que não existia."

“Havia um respeito muito grande entre as duas instituições [Lux e Galeria Zé dos Bois]. Quando fizemos os nossos concertos dos 20 anos com o Ty Segall, com Shabaaz Palaces, com o Thurston Moore, ou quando trabalhámos na BoCa [Bienal de Arte Contemporânea], ele manifestou sempre vontade de reunir pessoas e de partilhar uma certa sensibilidade, um gosto pelas artes, por propostas que não fossem as mais óbvias. Apesar de serem estruturas completamente diferentes, sempre nos sentimos em casa [no Lux]. Foi sempre muito inspirador perceber que alguém que tinha crescido tanto e que tinha criado um espaço da magnitude do Lux tinha essa sensibilidade e essa abertura aos outros.”

“Acho de ainda temos que processar muito [a sua morte], por ser uma figura tão resguardada da comunicação social. Sabemos do seu legado e dos projectos que desenvolveu, mas eu ainda não consegui perceber na totalidade a magnitude do que ele fez. Foi uma figura central na construção de um imaginário boémio e artístico da cidade e, se olhar em volta, não consigo encontrar mais pessoas com essa capacidade de construção. Ficámos todos um pouco mais órfãos”.

Pedro Santos (programador de música da Culturgest, co-fundador da Flur )

“Tive a sorte de o ter como senhorio e foi o melhor senhorio que a Flur poderia ter. Foi sempre alguém que nos defendeu e que defendeu que uma loja daquelas devia existir numa zona tão privilegiada, em concorrência com restauração tão elegante. No Manuel, tivemos sempre um aliado de tudo aquilo que fazíamos. Foi mesmo um privilégio poder colaborar com ele em muitas ideias. Ele quase nunca disse não às propostas que fazíamos e, sobretudo, elevou sempre a fasquia. Queria as coisas ainda mais bem feitas, mais eficazes, com melhor impacto, com melhor comunicação. Tinha um brio profissional inigualável. Por muito bem que montássemos todas as nossas ideias e toda a nossa estratégia, ele aparecia sempre a dar melhores sugestões.”

“Muitas vezes nós sentíamos que pela nossa dimensão e pelo inusitado das nossas propostas podíamos ter uma resposta negativa do Lux, mas havia dele interesse em continuar a acolher essas ideias. Isso surpreendia-nos. Como é que o Lux ainda conseguia fazer isso? Acho que era porque o Manuel conseguia tudo, das grandes coisas às pequenas coisas, das mais imediatas às menos imediatas. E ele não fazia qualquer hierarquização. Não havia as grandes e as pequenas, tentava fazer tudo da mesma maneira, bem feito. Lembro-me sistematicamente de que muitas vezes [quando produziam concertos] pedíamos apenas a sala de baixo, dados o dia da semana e o impacto da banda. Ele insistia que o Lux tinha de estar a funcionar na totalidade, o que seria uma sobrecarga de trabalho para uma máquina daquelas. Fazia questão de abrir a casa e escancarar as portas. Todas a divisões, todas as pessoas, tudo a funcionar em pleno. Havia nele vontade de participar, de colaborar e descobrir em conjunto.”

“A principal característica que tinham [os espaços a que Manuel Reis se dedicou] era serem plurais. Ao aceitar essa pluralidade, estavam a chamar-se muitas pessoas, a recebê-las todas e a respeitá-las. As pessoas podiam dizer o que pensavam, podiam criar o que quisessem. Isso faz com que todos nós nos sintamos hoje um pouco órfãos. Ele simbolizava esse espaço livre onde toda a gente sabia que poderia ser acolhida e receber de volta energia para criar tudo outra vez. Muita gente de fora de Lisboa pode achar isto um certo exagero local, mas não é. Acho que mesmo alguém que não tenha estado directamente envolvido nesta história toda sente a força dele. A importância do Manuel Reis manifesta-se tanto naquilo que ele fez como na consciência de que não há outro. A força dele é mesmo essa: 'E agora?'. É difícil encontrar alguém que tenha dado tanto.”

Pedro Ramos (radialista da Radar, criador das noites Black Balloon acolhidas no Lux)

"Tanto o sucesso e a longevidade do Frágil, e depois do Lux, devem-se a uma curiosidade constante ao programar e a uma misturada estética que é crucial para que as ideias circulem e novas ideias assim surjam. O Frágil e o Lux não eram o 'clube de tecno' ou o 'clube de rock', eram o Frágil e o Lux, muito acima de qualquer segmentação, e, por isso mesmo, muito mais entusiasmantes do que os outros. Esse entusiasmo constante e essa surpresa vão directos ao coração e a sobrevivência dos dois espaços passou muito por essa duradoura relação amorosa com os ouvidos e corações de quem escolhia (ou era escolhido) passar por aquelas portas."

"Ao trabalhar com o Manuel, percebi melhor a atenção que ele dava ao detalhe, à decoração da sala. Na Black Balloon ele gostava sempre de conversar comigo durante a tarde sobre onde colocaríamos os balões, que tipo de balões, a disposição das cadeiras, as luzes, os vídeos, todos os pormenores que fazem a diferença. E era assim também com a imagem do Lux lá para fora. Todas as fotografias usadas tinham de ser aprovadas por ele, porque ele tinha uma visão muito própria e era muito cuidadoso em preservá-la, mantendo um patamar de elegância exigente e ao alcance de poucos."

"Quando lhe apresentava uma ideia ligeiramente insana de concretizar, nunca me torcia o nariz. Os olhos dele brilhavam mais com o desafio de concretizar algo diferente. Guardo dele essa visão e esse entusiasmo, o não ter medo de pensar em grande. E muitas gargalhadas. E lágrimas e beijos naquela matinée dedicada ao Bowie [uma semana depois da morte do músico]."

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