O abismo sem fundo da nova selva

O que surpreende é a prolongada cegueira em que Estados e cidadãos têm vivido sobre o que talvez constitua a mais grave ameaça aos direitos civis desde o advento da Internet.

Permitam-me uma autocitação do que aqui escrevi em 17 de Agosto passado: “Não frequento as redes sociais por uma questão de liberdade individual e higiene mental face aos vírus propagados através dessas redes: a histeria comunicacional, as fake news, os abusos do anonimato e da identidade alheia, os insultos pessoais, os delírios ideológicos ou propagandísticos. Mas não contesto nem a sua existência — seria um absurdo! — nem o direito à sua utilização responsável, embora se trate de um universo onde predomina a lei da selva e para o qual só agora começa a colocar-se a necessidade de normas e regulação básicas.”

Sete meses depois, o escândalo da piratagem feita pela empresa Cambridge Analytica aos dados pessoais de dezenas de milhões de utilizadores do Facebook para efeitos de manipulação da campanha presidencial americana e, também, da campanha do “Brexit” no Reino Unido, não tem, afinal, nada de surpreendente. O que surpreende, sim, é a prolongada cegueira e o estado de negação em que Estados e cidadãos têm vivido sobre o que talvez constitua a mais grave ameaça aos direitos civis, leis e regulamentos internacionais (incluindo ao nível fiscal), desde o advento da Internet e a revolução que provocou em todo o mundo. Porque é que isso aconteceu — e pôde continuar a acontecer, já depois de não restarem quaisquer dúvidas sobre a natureza e dimensão dessa ameaça — é aquilo que deveria preocupar-nos e assustar-nos a todos. Mas permitam-me algum cepticismo sobre a capacidade e a vontade real das instituições e indivíduos que prezam a liberdade e os valores civilizacionais da democracia poderem desmontar, com a rapidez e eficácia indispensáveis, as engrenagens diabólicas que nos vêm tornando reféns das novas distopias e vírus totalitários que se expandem à escala global. Não é por acaso, aliás, que a democracia é um valor em queda acentuada através de um mundo cada vez mais povoado de Trumps, Putines, Jinpings, Erdogans e tantos aprendizes de feiticeiro autoritário-populistas.

Temos assistido nos últimos dias, depois das revelações sobre o caso da Cambridge Analytica, a uma sucessão de episódios em que múltiplas instâncias internacionais, dos Estados Unidos à Europa, se movimentaram para exigir a retractação dos culpados pelo que aconteceu, incluindo o jovem génio criador do Facebook, Mark Zuckerberg, cuja empresa foi fustigada por uma queda acentuada nas bolsas. E não faltou sequer um movimento de rebeldia de muitos utilizadores abandonando a inscrição na rede e antigos funcionários — também da Analytica — denunciando práticas tardiamente descobertas. Entretanto, fiel a uma postura já clássica e depois de um prolongado silêncio, Zuckerberg apareceu a penitenciar-se do escândalo e prometer corrigir o erro (um velho hábito seu) mas sem questionar o essencial: o modelo de negócio que faculta aos anunciantes sem escrúpulos os dados pessoais dos utilizadores da rede para fins inconfessáveis (embora finalmente revelados) e permite aos jovens empreendedores de Silicon Valley tornarem-se multimilionários da noite para o dia, na vanguarda da lista da Forbes (Zuckerberg é, para já, o quinto). O gangsterismo cibernético é apenas uma versão hiper-sofisticada mas por isso muito mais letal do que o gangsterismo mafioso tradicional.

O Facebook não vota por nós nas eleições, é certo, mas pode ser cúmplice da manipulação que vicia os resultados eleitorais — e, nessa medida, substitui-se à vontade livre e soberana dos cidadãos. Quando o génio, Zuckerberg ou outro, escapa da lâmpada, é muito difícil (senão quase impossível) fazê-lo regressar. Pelo menos, num mundo que se instalou no deslumbramento e na impotência face a essa nova genialidade empresarial e às ferramentas mágicas que ela criou — e das quais se tornou refém. O abismo da nova selva não tem fundo. 

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