Faltou ao trabalho durante dez anos, mas a justiça diz que isso não é nenhum crime

Durante uma década, Carlos Récio só apareceu para picar o ponto. Recebeu três mil euros por mês sem nunca trabalhar. Agora é a chefe que se arrisca a ser condenada.

Foto
O homem era responsável pelos serviços bibliográficos da assembleia valenciana xx direitos reservados

O funcionário da assembleia da província de Valência, em Espanha, que foi despedido no Verão de 2017 por não se ter apresentado ao serviço durante dez anos, não irá a julgamento. O Ministério Público concluiu que não está em causa nenhum crime e arquivou o caso, que tinha sido amplamente noticiado em Espanha no ano passado. Carlos Récio, o funcionário de 53 anos, argumentou que faltou por não ter secretária nem computador próprio, e o Ministério Público acabou por lhe dar razão.

Um porta-voz do Ministério Público explicou ao El País que, se Récio não tivesse informado os seus superiores de que não tinha um espaço de trabalho, a decisão teria sido diferente. Mas neste caso, o funcionário tinha apresentado pedidos para que lhe fosse atribuído um computador e um local para trabalhar — só que as chefias nunca responderam.

Se não tivesse havido esta comunicação, o absentismo prolongado teria características de ilícito penal (possivelmente de peculato, por estar em causa um hipotético aproveitamento de dinheiros públicos). Não se confirmando a acusação contra Récio, é agora a sua antiga chefe que se arrisca a ter o seu vencimento suspenso durante três a seis anos, uma vez que não cumpriu as suas obrigações em relação ao subordinado.

Récio era responsável pelo serviço bibliográfico da assembleia valenciana, função que desempenhava (pelo menos no papel) desde 2006. Segundo os colegas, a sua rotina consistia em picar o ponto às 7h30 e às 15h30 — sem que, no entanto, se sentasse a trabalhar. Algumas testemunhas contaram ao El País que Récio chegou mesmo a aparecer de robe e chinelos. Em 2017, acabou por ser despedido por ter cometido uma infracção muito grave e continuada de “abandono do serviço”, bem como outra infracção grave relacionada com “acções dirigidas a impedir que fosse detectado o seu incumprimento injustificado da jornada de trabalho”.

Récio é uma figura controversa na Comunidade Valenciana. Tinha sido um dos principais intelectuais por detrás de um movimento regionalista conservador conhecido como blaverismo (que defendeu a autonomização do dialecto valenciano face à língua catalã), activo durante os anos 80. Foi militante do partido Unió Valenciana, que chegou a integrar o governo regional numa coligação com o Partido Popular. Foi nesse período que Récio foi nomeado para a chefia do serviço bibliográfico da assembleia. Nos tempos livres, escrevia livros e bandas desenhadas de teor erótico.

Em 2005 foi acusado de ter aberto um bordel masculino na casa onde vivia com a ex-mulher. Apesar de a assembleia ter dito à imprensa espanhola que “a vida privada de um funcionário não é [da sua] competência”, o funcionário foi destituído. Em 2006, passou a ocupar o cargo que nunca chegou realmente a exercer. Ainda assim, recebia cerca de três mil euros mensais.

Em Fevereiro, tentou alugar uma sala na sede da junta de freguesia da Ciutat Vella de Valência para exibir trabalhos artísticos, usando uma identidade falsa. A exposição chamar-se-ia Amor a Valência – Os trabalhos de um homem que nunca trabalhou, mas acabou por ser cancelada dias antes da inauguração.

Sugerir correcção
Ler 6 comentários