Só a chuva evitou uma catástrofe do dobro do tamanho

Fogos de Outubro começaram a um domingo, com a população e bombeiros alerta. Acabaram com a chuva que, sem meios e em plena descoordenação, evitaram uma catástrofe que atingiria o dobro da área ardida.

Sem chuva, o incêndio teria sido o dobro
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Sem chuva, o incêndio teria sido o dobro Adriano Miranda
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Nelson Garrido

Era domingo, havia mais gente do que o normal nas aldeias e mais bombeiros em dia de descanso disponíveis para acorrerem aos quartéis. A chuva, um dia e meio depois do início dos grandes incêndios de Outubro do ano passado, apagou as chamas que o vento extremo potenciara e houve ainda o "efeito Pedrógão" que foi interiorizado pelas pessoas e ajudou a moldar comportamentos. São todos factores externos ao combate que ajudaram a minimizar os danos do incêndio que devorou cerca de 220 mil hectares.

A expressão repete-se por dez vezes no relatório dos técnicos independentes, quando estes avaliaram local a local o que aconteceu naqueles dias do meio de Outubro: a "chuva" ou "precipitação" terminou com o inferno. "Entretanto confirmam-se as primeiras chuvas e o incêndio é dado como dominado" ou "O incêndio é considerado dominado (...) fortemente motivado pela chuva que se fez sentir". Os relatos dos comandantes locais e distritais são confirmados pelas simulações feitas pelos técnicos: "Sem chuva no pós-Ophelia", a "área ardida duplicaria" e poderia atingir os 503 mil hectares, lê-se no relatório, numa análise suportada em estudos técnicos que simulam o que aconteceria sem chuva nas 18 horas seguintes de dia 17 de Outubro.

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Perante a dimensão e violência dos incêndios (ver página 4), os técnicos notam que houve um "colapso geral do sistema de protecção e socorro" e que "a forma como os dispositivos estão organizados e o sistema está estruturado" mostram que "não está devidamente preparado para situações catastróficas com esta dimensão e impacto".

Prova dessa desestruturação durante aqueles dias são os inúmeros relatos dos comandantes que assumem duas críticas: que não havia pré-posicionamento no terreno antes de o incêndio começar que permitisse um ataque inicial mais célere, mas que também não havia a possibilidade de o fazer. E depois, a curta "janela de oportunidade" que os incêndios deram ao combate fez com que este ataque inicial (ATI) tenha acontecido "quando a cabeça do fogo não podia já ser controlada, independentemente da capacidade e da quantidade de meios empregues".

E é aqui que os peritos dão ideias contraditórias ao longo do relatório. Por vezes consideram que "os meios aéreos em pouco poderiam ter contribuído para expandir as opções de combate", como mais tarde referem que "por inexistência dos meios disponíveis (...) não foi exequível" mobilizar no ATI aos incêndios "mais do que um meio aéreo". Neste ponto defendem que tendo em conta as condições que eram previsíveis "tudo deveria ter sido feito para o permanente reforço em ATI como única possibilidade de resolução dos diferentes problemas que durante o dia se vieram a constatar".

A velocidade e a imprevisibilidade do fenómeno climático fez com que vários corpos de bombeiros andassem para trás e para a frente. Quando estavam "fora das suas áreas de actuação própria, começaram a ser solicitados para os seus concelhos, sendo que este processo de retracção das forças, veio a determinar que em muitas ocorrências os meios locais ficaram entregues a si próprios". Esta movimentação provocou "uma sensação absoluta de abandono, atendendo à impotência sentida perante tanto pedido de socorro face à imensidão do fogo", lê-se no documento. 

Estes sentimentos de "abandono", também sentidos pelos bombeiros, são recorrentes ao longo da descrição e mostram que chegava à cúpula da ANPC. "Os comandantes posicionados mais a norte nem sabiam a quem reportar", lê-se no documento que ainda relata o caso do comandante dos bombeiros da Figueira da Foz, a braços com o incêndio de Quiaios que devoraria o Pinhal de Leiria, que diz que "não teve nem um telefonema por parte de alguém da ANPC".

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As câmaras acentuam esse sentimento. Das 92 que responderam a um inquérito dos peritos, cerca de metade (45,5%) refere ter contado apenas com os meios próprios e aqui contam-se, dizem os técnicos "os municípios mais afectados pelos incêndios". E para os ajudar nem contou a activação dos Planos municipais de emergência. 40% dos municípios que activaram os planos (59,7% accionou os planos), refere que isso "não acrescentou qualquer mobilização extraordinária de meios".

Ao abandono, impotentes perante o incêndio e com dificuldades nas comunicações - neste relatório os técnicos ignoram quase por completo os problemas na rede de emergência nacional, o SIRESP - valeu a estes municípios alguns factores além da chuva que ajudaram a mitigar algumas situações. 

Além da chuva, houve alguma ajuda pelo facto de ter tudo acontecido a um domingo. "A circunstância de ter sido a um domingo permitiu que nos corpos de bombeiros (...) houvesse uma disponibilidade dos operacionais que nalguns casos foi de 96% do efectivo do seu quadro activo", dizem os técnicos. O dia de descanso teve ainda outro efeito por "em alguns aglomerados populacionais haver os tradicionais eventos familiares, ou visitas de família, o que permitiu que em muitas circunstâncias, tivessem sido os civis, que se encontravam nesses territórios, a fazerem, sem qualquer apoio, a defesa perimétrica dos seus núcleos populacionais". 

E esta foi uma das lições de Pedrógão Grande que chegou às pessoas que foram afectadas pelos fogos de Outubro. O outro, notado pelos técnicos, é que houve casos em que as pessoas saíram das aldeias em perigo antes do período grave do incêndio, como foi o caso de "mais de 1000 pessoas que se juntaram no quartel dos bombeiros" em Castelo de Paiva". 

Ao contrário de Pedrógão, em que a maior parte das pessoas que morreu estava em fuga, nos incêndios de 15 de Outubro, a grande maioria faleceu em casa ou nas proximidades, a tentar salvar os bens. 

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