Bob, o desconstrutor

Depois de um polémico Prémio Nobel da Literatura, Bob Dylan chega agora à Altice Arena, esgotada, em Lisboa. Aos 76 anos, um momento capital para ouvir um dos maiores génios da música popular do nosso tempo.

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ROB GALBRAITH/REUTERS

Lá onde se recolhe do mundo e evita que olhares alheios se demorem em demasiado sobre a sua franzina figura – como se o próprio corpo recebesse ordens expressas para não se tornar demasiado visível –, deve Bob Dylan alternar entre um riso escarninho e pequenos acessos furibundos ao ler declarações enfáticas como: “Se houver um momento certo para ver Bob Dylan ao vivo nos últimos 20 anos, é agora.” Uma “verdade” destas, atirada ao público de forma tão definitiva (pela GQ britânica) e em destaque no site do músico, há-de massajar-lhe certamente o ego, mas será impossível dissociá-la de todo o folclore criado à sua volta na sequência da atribuição do polémico Prémio Nobel da Literatura em 2016 e não questionar que exacta razão torna neste momento tão vital apanhar Bob Dylan em palco e não deixar escapar a sua passagem (já esgotada) pela Altice Arena, esta quinta-feira, em Lisboa.

Recuemos então para o extremo mais longínquo desse intervalo temporal. Há 19 anos, quando Dylan passou pelo então Pavilhão Atlântico, o entusiasmo gerado pelo concerto foi bem mais morno do que por estes dias. Estávamos em 1999 e as suas duas actuações em Portugal (Lisboa e Porto), integradas na Never Ending Tour, davam-se numa altura em que o músico estava ainda a apanhar os cacos de duas décadas (de finais de 1970 até à segunda metade de 1990) de lenta erosão, em que dera reiterados sinais de um inquietante afunilamento criativo que parecia condená-lo a afundar o seu notável legado numa memória cada vez mais distante.

Pouco antes, em 1997, lançara Time Out of Mind, o álbum produzido por Daniel Lanois que significou a sua ressurreição artística. Mas não se percebia ainda se era prova de vitalidade ou apenas um espasmo antes de sucumbir de vez. Se Dylan se tivesse retirado em seguida, seria demasiado tentador escutar em canções como Standing in the doorway, Tryin’ to get to heaven ou Not dark yet possíveis epitáfios artísticos, uma lúcida despedida em beleza. Acontece que Time Out of Mind não ditou o final da sua discografia de estúdio, nem tão-pouco – viemos a percebê-lo nos anos seguintes – significou um acidente isolado na sua decadência final. Mesmo que nos últimos anos Dylan pareça ter-se acomodado a um papel de intérprete do grande cancioneiro norte-americano, é indesmentível que esse downsizing se deu quando a sua reputação tinha já sido reparada e que não adoptou essa vida como solução desesperada e derradeira para esconder uma inspiração decrépita.

Assim, agora que Bob Dylan passa pela Altice Arena coroado com os louros de Prémio Nobel, armado de canções e não para ler os seus escritos, ainda que ajudado decididamente por esse embalo para encher a sala – não esgotou o pavilhão em 1999 –, já não estará, como há 19 anos, remetido para uma mera reactivação nostálgica da adolescência do público que terá pela frente. Artistas com menos 20 anos de estrada do que ele nem sempre podem gabar-se da mesma sorte.

Dylan sem ser Dylan

A prova de que Bob Dylan sempre se recusou a protagonizar esse papel quase utilitário de preencher as expectativas e as fantasias do seu público sempre esteve bem à vista na sua relação indomada com o palco. Mesmo antes dos anos de reconciliação entre o músico, público e crítica que se seguiram a Time Out of Mind, as passagens de Dylan por Portugal encaixavam já, na perfeição, num perfil de extraordinário fingidor, de cultor da arte como grande ilusão. Se há muito se percebeu que a sua biografia foi sendo tantas e tantas vezes ficcionada em entrevistas, a ponto de se ter tornado impossível dizer ou intuir quem foi e quem é Robert Allen Zimmerman – o Dylan foi pedido de empréstimo ao escritor Dylan Thomas –, também sempre foi claro que os concertos lhe serviram para reescrever as suas canções. Reinterpretou-as, em certas ocasiões, de forma tão livre que em 1993, na sua estreia em palcos nacionais, no Porto e em Cascais, os relatos davam já conta de versões irreconhecíveis das peças mais notórias do seu reportório. Em Vilar de Mouros, passados 11 anos, também Like a rolling stone, All along the watchtower ou Ballad of a thin man só se deixavam identificar pelas letras, transformadas em canções ariscas e em nada aparentadas com aquelas que se popularizaram nas espiras dos discos de vinil.

Num certo sentido, podia afirmar-se que Dylan se recusava a ser Dylan – ou, pelo menos, a ser o Dylan que toda a gente esperava que ele fosse. E aquilo que ficava fatalmente a ecoar em quem assistia a tais furacões era a ideia, difícil de contrariar, de que um tipo não pode ser em 2004 o mesmo que era em 1964. Obedecer a essa subjugação temporal seria consentir que o passado fosse uma grilheta que teria de arrastar consigo de um lado para o outro. Se as canções queriam continuar a viajar com ele, tinham elas de se sujeitar a surgir em público travestidas. E se houve sempre quem se queixasse da falta de respeito pela assistência nestas ocasiões, a pergunta a fazer teria fatalmente de ser se seria de facto preferível que Dylan não se respeitasse a si mesmo.

O desprezo pelo modelo instituído que define o modo como uma estrela rock deve apresentar-se em palco era então sublinhado por um homem que, ao invés de ocupar o centro das atenções e de comandar multidões com a facilidade que se antecipava, preferia sentar-se debruçado sobre um piano eléctrico, virado para os músicos, encostado a um dos cantos de um cenário propositadamente esquálido. Quem ia ver Bob Dylan tinha de se contentar com a música, sem o fogo-de-artifício que tantas vezes parece ser requisito obrigatório destas celebrações geracionais. E tinha, já agora, com a ajuda preciosa do próprio, de se disponibilizar a ouvir os clássicos como se da primeira vez se tratasse.

Ser ou não ser clássico

A frustração com Dylan reincidiu em 2008, por alturas do Optimus Alive, diante de 20 mil pessoas. Uma vez mais, o músico deu o espectáculo que quis dar e não aquele que a sua inclusão no cartaz de um festival parecia prescrever. Nesse mesmo ano, em que recebeu um Pulitzer especial, preâmbulo para o Nobel que havia de chegar passados oito anos, já várias vozes se levantavam contra a atribuição de um prémio habitualmente destinado a distinguir jornalistas, escritores e dramaturgos. E, como escrevia então o New York Times, até os fãs mais acérrimos do bardo tinham razões para ficar preocupados com aquilo que poderia ser entendido como “outro capítulo da sua história complicada com o establishment, uma dança contínua de distanciamentos e reaproximações”.

Claro que, em 2008, Bob Dylan já tinha enxotado o fantasma da decadência para longe: gravara dois álbuns soberbos (Love and Theft, em 2001, e Modern Times, 2006); dera continuidade a uma Bootleg Series que nos tem oferecido preciosos acrescentos à discografia oficial (e nalguns casos, como no último volume, The Bootleg Series Vol. 13: Trouble No More, 1979-1981, obriga a repensar os juízos sobre os períodos menos afortunados do seu percurso artístico); iniciara a publicação da sua autobiografia com o primeiro volume das Crónicas (resta saber se haverá continuação ou se terá perdido o entusiasmo pelo registo); vira Martin Scorsese dedicar-lhe um espantoso documentário, No Direction Home; e tivera em Não Estou Aí, filme fractal de Todd Haynes, não só uma outra fixação da sua natureza impalpável no imaginário pop como a homenagem de uma banda sonora em que dos Sonic Youth a Cat Power, de Sufjan Stevens a Charlotte Gainsbourg, tantos lhe esboçavam a devida vénia num curioso conjunto de versões.

Numa altura em que as canções de Dylan são o lastro para um musical de Conor McPherson (The Girl from the North Country) que está a levar à loucura o West End londrino, nunca o nome do músico parece ter sido tão consensualmente exaltado. Apesar de acidentes de mota (mais ou menos mitificados) e problemas cardíacos, a vida parece ter-lhe concedido tempo e obra suficientes para a devida entronização. Talvez por isso agora pareça gastar o seu tempo a interpretar o cancioneiro de Frank Sinatra (Shadows in the Night e Fallen Angels) ou os clássicos de Irving Berlin, Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, Van Heusen e Jerome Kern, como se quisesse, no fim de contas, desviar a atenção do seu percurso e tentasse enganar-nos, uma vez mais, fingindo não ser também ele já um clássico.

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