As redes sociais, um novo inimigo da democracia?

O problema está no simplismo intelectual com que fenómenos complexos são tratados ao sabor de tendências, problemas e conveniências do momento.

1. A forma rápida e acrítica como se instalam ideias nas nossas sociedades deveria ser um motivo de profunda reflexão. Não contribui para cidadãos esclarecidos, nem para uma visão equilibrada sobre as profundas transformações que a tecnologia trouxe nas formas vida humana, a nível social e político. A imagem profundamente negativa que, nos últimos tempos, tem sido difundida sobre a relação das redes sociais com a democracia (Facebook, Twitter, etc.) são o mais recente exemplo dessa tendência. O contraste é demasiado flagrante com o passado recente para não levantar a questão do imediatismo simplista do muito que se escreveu e disse no passado e se escreve e diz agora. Até 2016, a Internet e as redes sociais eram generalizadamente idolatradas como amigas e difusoras da democracia: movimento de protestos no Irão em 2009, revoltas da “Primavera Árabe em 2011” campanhas eleitorais que levaram à eleição de Barack Obama, em 2008 e 2012, respectivamente. Nos dois últimos anos, passaram a ser vilipendiadas como o seu mais poderoso inimigo, especialmente após o referendo britânico a favor da saída da União Europeia (Brexit) e a eleição de Donald Trump, ambos ocorridos em 2016. O contraste é tanto mais flagrante e curioso quanto essa imagem laudatória era difundida por muitos dos media que agora as vilipendiam. Vale a pena olhar o que se escrevia no passado recente sobre o assunto.

2. A ideia de uma relação virtuosa entre as redes sociais e a democracia parecia bastante sólida na imprensa portuguesa e internacional, dos mais diversos quadrantes. “As redes sociais ajudam a democracia” (in Esquerda.net, 4/04/2011, entrevista ao sociólogo Manuel Castells, um dos principais teorizadores da sociedade em rede, originalmente publicada no jornal italiano La  Repubblica); “Redes sociais promovem democracia e facilitam comunicação”? in Jornal de Notícias, 28/09/2012). “Redes sociais são instrumento a favor da democracia”, in Diário de Notícias, 15/03/2013). Já na imprensa internacional, especialmente na anglo-saxónica, as redes sociais eram um modelo de novas virtudes políticas. A eleição de Barack Obama nos EUA não deixava dúvidas quanto a isso como se pode ver por estes exemplos: “Obama, Facebook and the power of friendship: the 2012 data election” (in Guardian, 17/02/2012); “The digital wizards behind Obama's tech-heavy re-election strategy” in Guardian, 17/02/2012); “Obama Is the First Facebook President — What Now?” in Huffpost, 2/03/2013; “President Obama joins Facebook, addresses climate change in first post”, in CNN 9/11/2015).

3. Para além do feito de serem instrumentais na eleição de Barack Obama nos EUA, com o Facebook num lugar de destaque, as redes sociais permitiam derrubar ditadores um pouco por todo o mundo, em especial no Médio Oriente. Essa era a imagem que ficava na mente do leitor, que não pensasse o assunto mais profundamente, quando lia a imprensa época. Alguns exemplos. Entusiasticamente, o Washington Times proclamava no seu editorial de 16/06/2009, a “revolução iraniana do Twitter” (“Iran’s Twitter revolution”). Quanto à revista Time, não escondeu igualmente o seu entusiasmo sobre o papel do Twitter nos movimentos de protesto democrático no Irão: “Iran Protests: Twitter, the Medium of the Movement”, 17/06/2009). Similar tom foi usado na altura da “Primavera Árabe, em 2011, pela revista Veja, do Brasil: “O Twitter só não fez a revolução. Mas ajuda” in Veja, 28/01/2011), onde era destacado o papel da Internet e das redes sociais na organização de protestos e coordenação de manifestações contra regimes avessos à liberdade de informação. Mesmo em publicações digitais especializadas na política internacional, como a Stratfor, encontrávamos similares ideias sobre o papel das redes sociais: “Social Media as Tool for Protest” in Stratfor, 3/02/2011.

4. Nos últimos tempos, o Facebook e a Cambridge Analytica estão no centro da acusação das redes sociais serem inimigas da democracia. A Cambridge Analytica terá usado informações pessoais de milhões de utilizadores do Facebook para configurar campanhas de propaganda política, manipulando as emoções dos eleitores, em casos como o das presidenciais de 2016 nos EUA, ganhas por Donald Trump. (Ver “Presidente da Cambridge Analytica suspenso após escândalo da recolha de dados”, in Público, 20/03/2018). Mas, num olhar mais atento, o que chama também à atenção é a estratégia de uso / manipulação de dados do Facebook, agora denunciada, não parecer substancialmente muito diferente da usada pela campanha de Barack Obama em 2012. No já referido artigo “Obama, Facebook e o poder da amizade: 2012 a eleição dos dados” (in Guardian, 17/02/2012), pode ler-se o seguinte: “A equipa da reeleição de Barack Obama está a construir uma vasta operação de dados digitais que, pela primeira vez, combina um banco de dados unificado sobre milhões de americanos com o poder do Facebook para chegar a eleitores individuais num grau nunca alcançado antes. Os analistas digitais prevêem que este será o primeiro ciclo eleitoral em que o Facebook poderia se tornar uma força política dominante.” A questão que naturalmente ocorre é a de saber por que razão esse uso da big data pela campanha de Barack Obama não levantou, já na altura, na imprensa, preocupações com a possível manipulação dos eleitores, nessas ou noutras futuras eleições. Ou será que só quando se produzem “maus resultados”, ou seja, aqueles que não gostamos politicamente, é que as redes sociais são inimigas da democracia?

5. Uma ideia fundamental a reter é que a tecnologia é neutra em termos de valores. Pode ser usada para os mais diversos fins, económicos, sociais e políticos. Pode ser usada para o bem e para o mal. Nesse aspecto, a Internet e as redes sociais trazem tanto benefícios como problemas similares a revoluções tecnológicas do passado. As redes sociais não, em si mesmas, nem inimigas nem amigas da democracia. O que temos tido é um discurso extraordinariamente simplista sobre o uso político das redes sociais. Passou, primeiro, pela fase da idolatria acrítica, sem qualquer pensamento mais profundo que não fosse navegar no imediato de alguns aparentes “bons efeitos” democráticos: ajudavam a eleger um grande Presidente como Barack Obama nos EUA e ajudavam a depor ditadores no Médio Oriente. A partir de 2016, sob um duplo choque de realidade, passou-se para outro extremo simplista: as redes sociais são inimigas da democracia. A mesma tecnologia que, supostamente, levava bons políticos ao poder permitiu a vitória a Donald Trump e terá facilitado também o voto favorável ao Brexit. Tal como a televisão a rádio durante a primeira metade do século XX, também trouxeram um novo instrumento para a democracia e para os inimigos da democracia. Nada de muito surpreendente. Na realidade, o problema fundamental não está no Facebook, nem no Twitter, nem até nas estratégias de propaganda agressivas da Cambridge Analytica, que fundamentalmente levou para o terreno digital algumas das manobras eticamente mais censuráveis, mas bastante usuais, das campanhas eleitorais. O problema está no simplismo intelectual com que fenómenos complexos são tratados ao sabor de tendências, problemas e conveniências do momento. É isto que importa combater, para bem da democracia.

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