Insensatez e direitos culturais

O conflito de ideias e de projectos políticos no espaço público é salutar e recomenda-se, mas o que se pretende é que o debate seja esclarecedor e contribua com argumentos razoáveis.

No artigo de opinião “Administração pública e democracia”, publicado a 16 de Março no PÚBLICO, Jorge Barreto Xavier (ex-secretário de Estado da Cultura, 2012-15) exprime a dúvida quanto à forma (pouco) democrática com que defendi, no Esquerda.net, a exoneração de Celeste Amaro do cargo de directora da Direcção Regional de Cultura do Centro.

Para justificar a suspeita inicial, Barreto Xavier deduz que a minha referência a Celeste Amaro como ex-deputada do PSD, apesar de "referir factos, distorce a realidade", e considera ainda que "esta forma de referir esta dirigente da administração pública sugere que a mesma é um agente político, nomeada de acordo com uma lógica clientelar". Contudo, na sua biografia, para além de cargos de nomeação política, não encontrámos outras funções profissionais que a pudessem identificar fora do âmbito da ligação partidária. Para além desta dificuldade, parece-nos óbvio que, ao mencionarmos um alto quadro do Estado, haja curiosidade pela sua carreira profissional e actividade política. 

Dito isto, e apesar de Barreto Xavier enquadrar o seu artigo na vasta controvérsia meritocracia versus clientelismo, nunca foi minha intenção posicionar nesse território as sobejamente conhecidas declarações polémicas da directora de cultura. Ou seja, não tenho qualquer interesse, neste caso, em saber se Celeste Amaro foi nomeada por Barreto Xavier por mérito ou por afinidade partidária, ou ambas. Ainda assim, e concordando ambos com o repúdio do clientelismo na sociedade portuguesa, não podemos ignorar que esse “vírus” contínua em franca proliferação, basta investigar as múltiplas nomeações de “boysefectuadas pelos partidos do sistema, PS, PSD e CDS.

O sectarismo é uma forma de cegueira que associa as boas ou más competências do desempenho profissional à cor partidária. Pessoalmente, porquanto me posiciono à esquerda do espectro político-partidário, reconheço plenamente que há na história da política cultural portuguesa bons contributos para a democracia e o desenvolvimento cultural, promovidos por governantes eleitos pelo PSD, penso, por exemplo, em Teresa Patrício Gouveia e na criação da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, criada em 1986. Deste modo, nunca poderia defender, como quer fazer crer Barreto Xavier, que "Celeste Amaro tem de se ir embora, não só pelo que disse, mas por ser do PSD". Antes pelo contrário, Celeste Amaro deve ser demitida do cargo pelo que pensa e pelo que disse de forma convicta em afirmações à Lusa, porque isso revela a sua incompetência estrutural, ou seja, a falta de mérito reconhecido para ocupar o lugar de directora Regional de Cultura.

No âmbito de uma análise histórica da política cultural em Portugal, é facilmente verificável que as afirmações de Celeste Amaro se encaixam perfeitamente no posicionamento “oficial” do PSD ao longo das últimas décadas acerca do financiamento público à criação artística, ancorados no discurso da subsídio-dependência dos agentes culturais. Nas últimas décadas, pelo menos três protagonistas na área da cultura assumiram publicamente a sua “alergia” aos programas de financiamento público às artes, e à suposta dependência financeira, mas sobretudo ideológica dos artistas face ao Estado: Vasco Graça Moura, Francisco José Viegas e Celeste Amaro. E esse discurso político opõe-se claramente ao de outros governantes. No PS, Augusto Santos Silva, por exemplo, afirmava que o "o termo subsídio-dependência não faz parte do meu discurso político".

Existem, portanto, diferentes perspectivas quanto à existência e função dos apoios às artes, mas também pontos comuns na reflexão acerca da necessidade de outras medidas que visem efectivar o acesso à cultura e a democracia cultural. O reforço da educação artística, a formação de públicos e a diminuição de barreiras económicas são algumas das problemáticas que, do lado da procura, devem ter, no lado da oferta, a respectiva correlação em termos de diversidade e descentralização das artes, só exequíveis com um aumento do financiamento público, e do aumento da respectiva dotação orçamental para a cultura para um mínimo de 1%, enquanto reivindicação universal.

O conflito de ideias e de projectos políticos no espaço público é salutar e recomenda-se, mas o que se pretende é que o debate seja esclarecedor e contribua com argumentos razoáveis. Todavia, não é isso que as referidas personalidades de direita têm feito. Vasco Graça Moura usava argumentos elitistas e juízos de gosto para denegrir a criação artística contemporânea: "se o acesso à arte se democratizou, deverá o Estado avalizar aquela subversão pela prática da subvenção, deverá louvar e pagar o que vai sendo criado a partir desse húmus empobrecido e sem qualidades, deverá aceitar que, também na cultura, tenha de prolongar-se a geração dos ineptos e dos imitadores subalternos daquilo que se pode ver na Internet ou nas revistas?" (in “Abrigos”, p153, António Pinto Ribeiro, Cotovia, 2004). Francisco José Viegas confundia o dever do Estado fomentar a criação artística com (in)dependência ideológica dos artistas face ao Estado. E, mais recentemente, Celeste Amaro basicamente declarou à maior agência de notícias de língua portuguesa no mundo (Lusa) umas tolices inadmissíveis a quem ocupa um cargo de alto dirigente na administração pública.

Actualmente, em 2018, depois de décadas de debate em torno das políticas culturais, é necessário que qualquer governante ou dirigente esteja consciente dos direitos e deveres fundamentais, e tenha uma compressão clara da dimensão cultural presente na Constituição da República Portuguesa. Tem de saber que não é permitido ao Estado exercer um “direito negativo” (diminuir ou atacar os direitos culturais dos cidadãos) e que lhe é exigido a prática do “direito positivo” (existência de medidas e programas de fomento à criação artística e diversidade cultural).

É que, no fundamental, daquilo que estamos a falar é de direitos humanos, de liberdade cultural e de direitos cívicos, de democracia e de cidadania cultural. E é por todas estas razões, institucionais e constitucionais, que Celeste Amaro deve ser exonerada do cargo, por insensatez e falta de mérito na promoção e na defesa de direitos consagrados.

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