Gdansk, a cidade livre na nova Polónia autoritária

O local onde nasceu a resistência ao comunismo na Europa de Leste é hoje um refúgio num país onde a democracia anda para trás, liderado por um Governo populista. Até o Solidariedade de Lech Walesa se tornou um aliado das forças retrógadas.

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A cidade de Gdansk Kacper Pempel/REUTERS

Sob um frio gélido, habitantes de Gdansk sem ligações anteriores a qualquer movimento protestam, à porta de um tribunal, contra uma nova lei do Partido Lei e Justiça (PiS) que subordina as eleições locais e as instâncias judiciais à autoridade do Governo. Juntam-se cerca de 400 pessoas, que erguem velas acesas como símbolo da sua resistência. Por toda a Polónia, dezenas de milhares de pessoas têm protestado nas ruas contra a apropriação de poderes por parte do PiS.

São já dois anos de retrocesso democrático na Polónia sob a liderança do PiS. Passo a passo, o partido despojou o sistema judicial da sua independência. Esta lei provocou protestos em mais de 40 cidades. Em Gdansk, estas poucas centenas de manifestantes arriscam ser facilmente identificados pela polícia que, de acordo com Roman Daszczynski, jornalista e editor do portal www.gdansk.pl, filma o protesto.

Embora os que trabalham em empresas ou instituições estatais temam represálias, as pessoas mostram a cara. A cidade de Gdansk é governada pela Plataforma Cívica, um partido liberal, mas a sua voivodia, o nível seguinte da divisão administrativa polaca, e que emprega milhares de pessoas, está nas mãos do Lei e Justiça. É mais fácil manter-se anónimo nas manifestações que juntam dezenas de milhares de pessoas em Varsóvia, diz Daszczynski.

Um rosto familiar

Do meio das velas que cintilam na brisa gelada surge uma figura corpulenta, com um reconhecível bigode cinzento: Lech Walesa, o lendário electricista dos estaleiros navais de Gdansk, que em 1980 liderou a marcha para a liberdade de uma nação de 38 milhões de habitantes. Walesa, o primeiro Presidente da Polónia pós-1990 e que ainda hoje mora em Gdansk, junta-se aos manifestantes.

 “Já devem ter reparado que as coisas não estão bem na Polónia”, diz. “O PiS está a destruir tudo o que conseguimos alcançar. O mundo está connosco nesta luta. Achava que ia poder descansar, já trabalhei muito na vida. Mas pelo que vejo temos todos de acordar e voltar ao trabalho. Não aceito a destruição da Polónia, temos de fazer tudo para tirar este grupo do poder o mais depressa possível!”, afirma Walesa sob fortes aplausos.

Do outro lado da rua, da janela de um quarto andar da câmara municipal de Gdansk, Pawel Adamowicz, observa calmamente os protestos. Presidente da administração da cidade há 20 anos, advogado e antigo colega de trabalho de Walesa, é uma figura odiada pelo PiS, que o acusa de mentir sobre os seus bens imobiliários. Liberal e membro da Plataforma Cívica, rapidamente se tornou alvo de uma campanha do governo. (Em declarações oficiais, Adamowicz afirmou não ter as posses de que é acusado.)

No meio das acusações de corrupção, os factos falam a favor de Adamowicz. Sob a sua administração a cidade tem florescido. Gdansk tem beneficiado dos fundos europeus: recebeu nos últimos cerca de 600 milhões de euros – entre as cidades polacas, só Varsóvia recebeu mais. O investimento nas infra-estruturas de Gdansk tem sido a locomotiva do desenvolvimento da cidade, com projectos rodoviários, ferroviários e de túneis a atraírem investidores e a criarem empregos. “O ar que respiramos aqui”, diz Roman Daszczynki, “é mais limpo, é diferente do de Varsóvia.”

Gdansk é também o maior porto da Polónia, por onde passam anualmente cerca de 40 milhões de toneladas de mercadoria, um número muito significativo a nível europeu.

Uma distopia muito polaca

A economia é vital para a cidade, mas não é o que mais a distingue. Contra o pano de fundo da evolução da situação política da Polónia, Gdansk está a tornar-se uma ilha de liberdade. Quando o Parlamento, onde o Lei e Justiça tem maioria, aprovou uma lei especial englobada na legislação populista de “descomunização”, quase 30 anos após a queda do comunismo, foi decidida a mudança do nome de ruas por todo o país. Tal como no romance distópico de George Orwell 1984, os nomes antigos foram substituídos, muitas vezes pelo nome de Lech Kaczynski, o falecido Presidente, irmão gémeo do antigo primeiro-ministro Jaroslaw Kaczynski, do PiS.

Em Janeiro, Pawel Adamowicz foi um dos poucos autarcas que disse “não”. O PiS quer retirar todos os poderes à administração local, afirmou. “Esta lei viola o princípio constitucional polaco da descentralização do estado.” Adamowicz diz em voz alta aquilo que os outros só pensam: a intenção das autoridades é esvaziar as competências dos governos locais, para fortalecer o sistema central e o partido no poder.

O Governo e os militantes locais do PiS mostram o seu descontentamento com o liberalismo do presidente de Gdansk protestando contra todas as suas acções. Quando o município preparou um folheto para estudantes sobre contracepção e sexo seguro, os representantes do PiS acusaram Adamowicz de distribuir propaganda a incentivar os jovens a terem relações sexuais.

Sente-se o nervosismo por todo o país, incluindo em Gdansk, que antecede as eleições locais de Novembro.

Do Portão n.º 2 para leste

A 20 minutos de distância do tribunal na Rua Nowe Ogrody e da câmara municipal, três enormes cruzes destacam-se no céu cinzento de Inverno: é o monumento em honra dos trabalhadores dos estaleiros que foram assassinados. Em Gdansk, e particularmente nos estaleiros, ocorreram regularmente ondas de protestos contra as autoridades durante os 40 anos em que a Polónia esteve sob domínio comunista. Em Dezembro de 1970, 39 pessoas foram mortas pelo exército e pelas milícias comunistas em frente ao portão n.º 2 dos estaleiros. Quando, em 1980, teve início uma nova greve nos estaleiros, um dos seus principais objectivos foi homenagear os trabalhadores assassinados dez anos antes. Hoje, o monumento está-se a poucos metros do portão n.º 2.

Este portão passou a simbolizar também os protestos de 1980, que levaram à emergência do Solidariedade e às monumentais mudanças na Polónia e nos países da Europa Central e de Leste. Durante muitos anos os estaleiros estiveram rodeados por um muro que os separava do resto da cidade e, durante as greves, era no portão nº 2 que milhares de habitantes de Gdansk se reuniam, trazendo flores e comida para os trabalhadores. Foi também aqui que Lech Walesa anunciou o fim da greve.

Hoje, o portão ainda está decorado com flores e retratos de João Paulo II e de Nossa Senhora. Mas os antigos estaleiros desapareceram. Um novo bairro, de 70 hectares, baptizado Cidade Nova, vai ali ser construído.

Dos escombros dos estaleiros

Por trás do simbólico portão ergue-se o novo e enorme edifício que alberga o Centro Europeu Solidariedade (CES), museu dedicado à história do Solidariedade e cuja fachada é uma estrutura enferrujada feita com restos de cascos de navios. É aqui, num dos pisos superiores, que Lech Walesa tem o seu escritório.

No portão n.º 2 passo por um grupo de trabalhadores de uma das fábricas que nasceu nos escombros dos antigos estaleiros. São ucranianos, recém-chegados de Leste para salvarem o mercado de trabalho polaco.

Estamos em Fevereiro e a visita ao CES começa com uma conferência sobre liberdade de expressão intitulada Free European Media, organizada pela Federação Europeia de Jornalistas. O presidente da câmara Pawel Adamowicz recebe os convidados.

“Não podiam ter escolhido melhor local para esta conferência”, afirma. “Gdansk foi desde sempre uma fonte de inspiração. É muito bom que numa era de propaganda e de fake news ainda haja jornalistas que acreditam na verdade, na credibilidade e no serviço público.”

Basil Kerski, director do Centro Europeu Solidariedade, declara que “a Europa começa aqui.” Numa sala grande e vazia, a sua voz soa triste. “O CES não se dedica apenas à história do nascimento da democracia polaca, é também um centro de registo das tradições democráticas europeias. Hoje devemos questionar-nos sobre o rumo da sociedade, a estabilidade da democracia e a nossa tolerância enquanto cidadãos, não só na Polónia como no resto do mundo. Muitos países europeus têm dificuldade em conciliar os interesses nacionais com os europeus como um todo.”

Jornalistas polacos sobem ao palco. Krzysztof Bobinksi, da Sociedade do Jornalismo, fala sobre a censura que está a acontecer nos meios de comunicação polacos, e sobre os despedimentos em massa de jornalistas devido às suas simpatias políticas. Bem-vindos à Polónia dos dias de hoje.

A imagem de Gdansk, a primeira cidade a travar a luta contra o comunismo, era muito celebrada nos anos 80. Toda a gente a associava ao berço do Solidariedade e à oposição ao regime. Hoje, locais onde se discute a liberdade de expressão, como o CES, são perseguidos pelo PiS por agruparem pessoas que não seguem a doutrina populista. Em 2016, quando Krzysztof Wyszkowski, figura da oposição na era comunista e hoje apoiante do Lei e Justiça, deixou o conselho de supervisão do CES, descreveu Lech Walesa como um “génio do crime e impostor” e Donald Tusk como uma “invenção da polícia secreta comunista”.

Na linha da frente

É a câmara municipal que assume a gestão do CES. Mas um novo museu, o da II Guerra Mundial, é gerido por Varsóvia e a sua direcção e pessoal estão nas mãos do Governo. Ao abrir, em 2017, a exposição recebeu aplausos de historiadores de todo o mundo. “A narrativa da exposição de Gdansk muda completamente a percepção da guerra”, comentou Timothy Snyder, da Universidade de Yale.

Infelizmente, essa percepção deixou de ser válida. O novo director, Karol Nawrocki, fez desaparecer provas de que o PiS tentou evitar que a exposição fosse terminada. Foi o início da censura. O Ministério da Cultura ordenou uma revisão da exposição permanente conduzida por historiadores associados ao Governo, que deram um parecer negativo. O PiS critica também o filme mostrado no final da exposição, um vigoroso grito anti-guerra.

Em Novembro de 2017 o apartamento de Pawel Machcewicz, ex-director do museu, foi visitado por agentes da Agência Central Anti-Corrupção (CBA). O historiador estava no estrangeiro, portanto os agentes informaram o filho que queriam interrogar o seu pai por alegados actos cometidos em prejuízo do museu. Ao mesmo tempo, agentes da CBA vasculharam a câmara municipal de Gdansk e o ministro da Cultura acusou a anterior administração do museu de má gestão.

No caminho da câmara municipal para os estaleiros, os turistas passam por um elegante edifício de escritórios. É a sede do sindicato Solidariedade. O Solidariedade, contudo, em vez de defender os direitos dos trabalhadores, como nos anos 80, tornou-se uma plataforma para dirigentes do PiS. Para os que recordam como ostentavam orgulhosamente na lapela o crachá do Solidariedade, onde se depositavam todas as aspirações democráticas e libertárias dos polacos, este declínio é doloroso.

“Nas manifestações eu cantava, juntamente com milhares dos meus concidadãos, a palavra Solidariedade, porque era um símbolo e uma síntese de tudo aquilo por que lutávamos”, diz Roman Abramski, professor de História reformado. “Era uma marca de que nos orgulhávamos. Hoje, essa marca está a ser usada para assustar as pessoas que se opõem a este Governo autoritário. O Solidariedade tornou-se num ajudante do governo, assumindo-se como um sindicato do regime, não dos trabalhadores.”

Abramski aponta na direcção do portão nº 2. Todos os anos, as celebrações do aniversário de Agosto de 1980 têm lá lugar. Desde que o PiS subiu ao poder, iniciou-se uma disputa sobre quem pode ou não manifestar-se ali nesse dia. O governador da voivodia de Pomorskie emitiu uma ordem administrativa a declarar que só o Solidarnosc podia organizar as celebrações, impedindo assim a oposição de participar.

Janusz Sniadek, antigo presidente do Solidariedade e hoje deputado pelo PiS, afirmou mesmo à imprensa: “O símbolo do Solidariedade é Lech Kaczynski, não Lech Walesa.”

O novo Solidariedade

Roman Abramski diz que o Solidariedade era também um grande movimento social, que juntava compatriotas com visões políticas muito diferentes na luta pelos direitos cívicos. “Porque é que só o Solidariedade pode festejar a data?”, questiona. “Especialmente porque estão claramente de um dos lados do espectro político. Apoiam o partido que está a limitar os direitos cívicos e a liberdade.”

O actual presidente do Solidariedade, Piotr Duda, não esteve nas greves de 1980 porque era muito novo. É mais conhecido pelas férias em apartamentos de luxo e pelos ataques a jornalistas liberais. Sobre Duda, Roman Abramski diz que “a disputa sobre quem tem direito a homenagear o aniversário de Agosto de 1980 é na verdade uma luta contra a falsificação da História. Uma tentativa de empurrar Lech Walesa para as margens.”

O colapso dos estaleiros é um sinal visível das mudanças na cidade. Mas a História de um local tão extraordinário, combinada com a narrativa generalizada sobre o amor à liberdade dos seus habitantes, irá para sempre permanecer na memória de quem a visita.

A associação simbólica de Gdansk com o Solidariedade está esgotada. Neste frio gelado e sob um céu de chumbo, poucos são os que depositam flores no portão nº 2. No tribunal da Rua Nowe Ogrody vai começar em breve um julgamento sobre a protecção dos direitos individuais: Jaroslaw Kaczynski, líder do Lei e Justiça, está a processar Lech Walesa pelas palavras que o antigo sindicalista escreveu sobre ele no Facebook.

Mesmo antes de chegarem as eleições do Outono, já tivemos a prova de que a sociedade polaca está a cair no populismo, no anti-europeísmo e no nacionalismo. Quando o presidente da Polónia, Andrzej Duda, visitou Gdansk em Dezembro, alguém tentou tapar a placa com a inscrição “Aeroporto Lech Walesa”.

Há pouco tempo, activistas do PiS entregaram uma petição para que o nome seja mudado. A ideia não deve ir para a frente, porque a administração do aeroporto ainda pertence à câmara municipal. E este autarca e esta cidade não são adversários fáceis de derrotar.

PÚBLICO/INVESTIGATE EUROPE
Investigate Europe é um projecto iniciado em Setembro de 2016, que junta nove jornalistas de oito países europeus, que o PÚBLICO integra

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