A dança portuguesa foi a França e saiu em ombros

Durante cinco dias, um festival em Brest foi o epicentro da dança portuguesa. Passada a euforia da (re)descoberta, será preciso esperar uns meses para poder afirmar que Vera Mantero, Cláudia Dias, Jonathan Uliel Saldanha, Marco da Silva Ferreira e Ana Rita Teodoro estão oficialmente numa relação com França.

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Brother, de Marco da Silva Ferreira Paulo Pimenta

Encaixada com bastante suor numa agenda que só nos próximos meses inclui idas a Sófia, Oslo, Lyon, Paris e Estrasburgo (mas também a Ovar e Loulé), a apresentação de Brother com que na noite de sábado Marco da Silva Ferreira e os seus seis irmãos de palco (quatro dos quais substitutos, porque não é só a agenda dele que anda difícil…) encheram os 700 lugares da sala principal do Le Quartz, em Brest, e que terminou com boa parte da plateia a aplaudir de pé e a usar palavras como “apogeu” seguidas de ponto de exclamação, podia ter sido só mais uma data numa digressão. Mas mesmo para um coreógrafo que aos 30 anos passou a ter uma vida inusitadamente internacional, atendendo ao congénito estatuto periférico da dança portuguesa, fazer parte “desta paisagem tuga” (roubamos a expressão a Ana Rita Teodoro) que o festival DañsFabrik programou como epicentro da sua sétima edição — e que trouxe ainda a Brest, para uma foto de família com curadoria de Tiago Guedes, Vera Mantero, Cláudia Dias e Jonathan Uliel Saldanha — amplifica exponencialmente as possibilidades de haver química com os programadores de um circuito tão determinante para a irradiação na Europa como o francês.

São as últimas horas do último dia do festival e por esta altura Marco da Silva Ferreira já viu centenas de vezes a cena surreal que é os seus bailarinos a saírem em ombros do foyer do Le Quartz — além do “apogeu do festival”, Brother foi também a imagem que a direcção decidiu estampar nos sacos de pano pretos que por toda a cidade identificam a comunidade DañsFabrik. Noutra mesa do bar, Jonathan Uliel Saldanha e Catarina Miranda, que horas antes, no centro de arte contemporânea Passerelle, activaram pela última vez a selva technicolor que trouxeram ao festival, a instalação Vocoder & Camouflage: Tactics of Decay, continuam a festejar “a importância capital” de poder mostrar fora de Portugal o que têm andado a fazer. Uns andares acima, Ana Rita Teodoro há-de cruzar-se com um cartaz de 2001, o ano em que Vera Mantero aqui apresentou Um Estar Aqui Cheio (aliás, Un Être Ici Plein), enquanto se prepara para voltar a mostrar, em Fantôme Méchant / Assombro, como os fantasmas do butoh  podem assombrar canções tradicionais portuguesas. Canções do género daquela que, na véspera, regressada a Brest no seu impecável francês, Vera Mantero pusera uma plateia de 320 pessoas a trautear no fim de Os Serrenhos do Caldeirão: exercícios em antropologia ficcional). 

“Em Brest, Portugal faz dançar os seus coreógrafos”, resume um artigo do Le Monde afixado à entrada, ao lado de uma longa entrevista a Cláudia Dias. E já não era sem tempo, acrescentará Emmanuelle Huynh, figura tutelar da dança francesa, que pediu o microfone no encontro que juntou o público do festival e os artistas portugueses para dizer que sentiu falta deles nos últimos dez anos: “Para a minha geração, o corpo português e a maneira como ele inventou uma relação com a palavra permanece um lugar de sonho. Foi um sofrimento quando deixaram de vir a França — e um choque perceber que artistas como o João Fiadeiro deixaram de ter meios para produzir.” 

Nem tudo se resolveu entretanto, e os efeitos retroactivos da austeridade que Portugal supostamente já enterrou também tiveram os seus minutos de fama por estes dias — Ana Rita Teodoro, por exemplo, que regressou ao DañsFabrik depois de há um ano ali ter mostrado Delirar a Anatomia, não sabe o que vai acontecer à peça que deveria estrear em 2019, Fofo, agora que um dos seus co-produtores, o festival Circular, ficou de fora dos apoios da DGArtes. De resto, e mesmo vivendo em Lisboa e querendo continuar a fazer parte da tal “paisagem tuga”, tem tido mais apoio em França, onde desde o ano passado é artista associada do Centre National de la Danse, do que em Portugal: “Mais espaços de trabalho, mais dinheiro, mais oportunidades de apresentação. Em Portugal, por incrível que pareça, tem sido impossível apresentar-me fora de Lisboa e Porto. Criei uma associação com o João dos Santos Martins, a Parasita, mas nem sequer podemos concorrer a um apoio continuado porque não temos historial suficiente”, precisa.

A França em geral, mas o DañsFabrik em particular, argumenta, é um caso exemplar do investimento que se pode fazer num trabalho artístico: “A maneira como te recebem, como cuidam de ti — é um festival que só apresenta artistas por cujo trabalho se interessa de verdade.” O que, sendo precioso para percursos em fase de afirmação, também é importantíssimo “para quem já fez muita coisa”, acrescenta Vera Mantero, que após “um período de seca” (nada a ver com a crise, explica ao PÚBLICO, “são ciclos naturais”: “Há momentos em que um teatro se foca muito em ti, mas depois tem de se interessar por outros artistas”), tem podido regressar a França, onde, confirma, o Le Quartz se constituiu como um lugar especial, pelo “público extraordinário que foi construindo ao longo dos anos”, pelas condições técnicas, mas sobretudo pela dedicação: "Aqui assume-se a responsabilidade de contribuir para que o teu espectáculo possa continuar a ter vida. Fornecerem-te uma lista dos programadores que vão estar presentes para o ver é uma prática tão normal como assegurar que tens um transfer para o aeroporto.”

Um potencial de expansão

Mas se a presença num festival como este vale substancialmente pelos contactos que podem potenciar a projecção internacional de uma peça já estreada, ou a captação de co-produtores para outras que hão-de vir, há encontros paralelos, “menos interesseiros, menos calculistas”, que também se produzem. Cláudia Dias, que trouxe a Brest o segundo capítulo do ciclo de sete peças com que se retirará definitivamente da dança, Terça-feira: Tudo o que é sólido dissolve-se no ar, ficou surpreendida com o pudor com que os programadores receberam a manifestação do seu ponto de vista claramente pró-palestiniano (“Faz-me pensar que em países onde eu não imaginaria há processos de auto-censura a influenciar as escolhas das instituições culturais”), mas ao mesmo tempo animada com a maneira como os artistas libaneses que também estiveram no festival se identificaram com o espectáculo e o aplaudiram de pé. “Estamos muito obcecados com o mercado europeu das artes performativas, mas há mais mundo: se calhar podemos apresentar esta peça em Beirute” (ou talvez não seja necessário, contrapõe ao PÚBLICO o director do DañsFabrik Matthieu Banvillet: as reacções a Terça-feira… “foram ditirâmbicas”). 

Esse potencial de expansão da audiência é também umas das “vantagens fatais” que Jonathan Uliel Saldanha encontra na internacionalização que iniciou há um ano com a instalação de Oxidation Machine no Palais de Tokyo, em Paris, e agora prossegue com Vocoder & Camouflage, a floresta de plantas mortas cuja lenta decadência será possível acompanhar no Passerelle até 28 de Abril. “A escala do país faz com que seja fundamental mostrar fora, até por uma questão de vitalidade: o normal em Portugal é só conseguires apresentar o trabalho uma vez, na melhor das hipóteses duas, e é óbvio que isso limita imenso, até porque te encerra num loop em que o público é sempre o mesmo”, defende. 

Até num caso à parte como o de Marco da Silva Ferreira, que tem a última peça, Brother, mais do que lançada e a próxima, Bisonte, já com apresentações marcadas em Charleroi e Paris, “a exposição ainda não é suficiente”: “Ainda só vou no meu segundo espectáculo, ainda estou a afirmar qualquer coisa, a perceber qual é a minha linguagem. E ainda preciso muito de aprender, porque não tive formação académica”, diz, admitindo que a subida tem sido “tão exponencial, tão em rampa”, que não consegue deixar de imaginar a queda.

A ideia é justamente que todo este trabalho de internacionalização permita a uma carreira como a de Marco da Silva Ferreira continuar a andar em ombros, contextualiza Tiago Guedes, o coreógrafo, e director do Teatro Municipal do Porto, em quem o DañsFabrik delegou a escolha dos artistas deste Foco Portugal. “A direcção arriscou ao programar o Brother naquela enorme sala, e correu muitíssimo bem; de resto, o DañsFabrik é um festival especialmente acolhedor e cuidadoso, e isso viu-se na maneira como soube escolher o espaço certo para cada peça e assim sublinhar as particularidades autorais de cada artista”, sublinha. Quanto às repercussões de uma operação como esta, será preciso esperar para ver: “Este é um festival pequeno mas dada a sua história, e à do festival a que veio suceder, o Antipodes, todos os anos recebe um conjunto muito qualificado e muito atento de programadores interessados em fazer descobertas. Daqui a três ou quatro meses vamos saber se aconteceram coisas. Acredito que vão acontecer.”

O PÚBLICO viajou a convite do Teatro Municipal do Porto

 

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