Uma mulher no topo da CIA era impensável, mas as espias foram sempre notáveis

A desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres faz parte da história da maior organização de espionagem do mundo. Apesar disso, Hall, McIntosh, Grimes e Matthews foram heroínas, polémicas e inspiraram Hollywood.

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Virginia Hall a ser condecorada com a Cruz de Serviços pelo chefe da OSS, general William Donovan, em 1945 Cortesia de Erik Kirzinger
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Gina Haspel, a primeira mulher a dirigir a CIA CIA/Reuters
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Sandy Grimes no Museu dos Espiões dos EUA, em 2016, no lançamento de Circle of Treason Geraldshields11/Wikimedia Commons

O Presidente Donald Trump fez história esta terça-feira, dia 13, ao nomear Gina Haspel para directora da CIA, a primeira mulher a ocupar o cargo. A confirmação da sucessora de Mike Pompeo, que foi substituir Rex Tillerson na Secretaria de Estado, representa um marco para a agência de espionagem que tem sido dominada por homens.

A CIA, formalmente criada em Setembro de 1947, nunca teve uma mulher como directora. Quando foi fundada, a seguir à Segunda Guerra Mundial, um grupo de mulheres — muitas delas antigas operacionais da OSS, precursora da CIA — passou a trabalhar para a agência em Langley, no estado da Virgínia, onde tem o seu quartel-general. Algumas, incluindo a lendária espia Virginia Hall, eram operacionais de elevada eficácia e corajosas mas nunca ganharam os mesmos salários dos seus colegas homens nem eram promovidas como eles. Ainda maior era o número de mulheres que trabalhavam como secretárias ou funcionárias.

Na verdade, a CIA esteve consciente, desde os primeiros dias, das desigualdades de género e tentou remediá-las. No início dos anos de 1950, o então director Allen Dulles ordenou uma auditoria interna — liderada por um grupo de mulheres da CIA conhecido como “O Painel do Saiote” — para examinar os pagamentos e o grau de disparidades entre homens e mulheres. De acordo com o sítio da Internet da CIA, o relatório concluiu que o grau médio das mulheres era GS-5 e o dos homens GS-9. Nenhuma mulher ocupava um cargo superior.

Em meados dos anos de 1990, várias mulheres de uma unidade clandestina da CIA ameaçaram processar o seu empregador, sob a acusação de “preconceito sexual generalizado e de assédio”, segundo uma reportagem do New York Times. Um juiz federal acabou por aprovar um acordo entre as partes que obrigava a CIA a pagar um milhão de dólares às queixosas, um número que estas combateram sem sucesso por o considerarem demasiado baixo. As mulheres reclamavam que tinham perdido promoções por causa de uma rede entrincheirada de “rapazes velhos”.

Ao longo dos anos, a CIA aumentou significativamente o número de mulheres na sua hierarquia. E diz que a percentagem de mulheres é hoje pouco menos de 50%, a tempo inteiro e parcial.

As mulheres tiveram um papel decisivo em dois momentos-chave da história da agência: lideraram a equipa que identificou Aldrich Ames, uma das mais famosas toupeiras russas dentro da CIA; e dominaram o grupo conhecido por Alec Station (ou Unidade bin-Laden), criado nos anos anteriores aos ataques terroristas do 11 de Setembro para seguir o rasto de Osama bin-Laden e dos operacionais da al-Qaeda.

Haspel, uma veterana com 33 anos de experiência na CIA, é vista com respeito entre os seus pares da agência. Mas também é atacada pelo seu envolvimento na direcção de uma prisão secreta na Tailândia, onde os prisioneiros eram submetidos a afogamentos simulados (waterboarding) e a outras formas de tortura. 

Há muito que as espias agarraram a imaginação do público. São protagonistas nos dramas de Hollywood, os mais conhecidos dos quais são 00.30 A Hora Negra/Zero Dark Thirty, sobre o ataque dos Navy Seal, a força de operações especiais da Marinha dos EUA, que matou Osama Bin-Laden, e a série Segurança Nacional/Homeland, com Clare Danes no papel de uma operacional da CIA.

Estas são algumas das pioneiras mais notáveis da agência:

Virginia Hall, “A Senhora Coxa”

Nascida no estado do Maryland e conhecida como “A Senhora Coxa” por se apoiar numa prótese depois de ter perdido a perna esquerda num acidente de caça, Hall trabalhou para a OSS na rectaguarda das linhas inimigas francesas, com o objectivo de fomentar a resistência contra os nazis. Procurada pelo chefe da Gestapo, Nikolaus “Klaus” Barbie, “O Carniceiro de Lyon”, este terá dito um dia a subordinados seus: “Dava tudo para pôr as mãos naquela p... canadiana”.

Com a vida em risco, Hall fugiu de França e chegou a Espanha atravessando a pé as montanhas cobertas de neve dos Pirenéus. Conta-se na sua biografia, escrita por Judith Pearson, The Wolves at the Door, de 2005, que nessa travessia usou a perna boa para afastar a neve enquanto arrastava a de madeira, à qual chamava “Cuthbert”. Depois da guerra, Hall juntou-se à CIA. No ano passado, um centro de treino da agência passou a ter o seu nome.

Elizabeth McIntosh, operacional lendária da OSS

Começou como jornalista no Hawai onde testemunhou o ataque de Pearl Harbor em 1941. McIntosh — conhecida por “Betty” — falava fluentemente japonês e era especialista em propaganda  na Ásia e Sueste asiático durante a Segunda Guerra Mundial.

Como oficial da OSS na divisão de Operações de Moral, chegou a distribuir uma ordem falsa do Governo japonês para libertação dos seus soldados. Obrigou um prisioneiro de guerra japonês a escrever o texto para que a caligrafia fosse realista.

Mas a operação que sempre a assombrou foi outra. Na Segunda Guerra Mundial, as chefias pediram-lhe para entregar um misterioso pedaço de carvão a um agente chinês da OSS junto a uma linha de caminho-de-ferro na cidade de Kunming, no sul da China. Descobriu mais tarde, através do seu segundo marido e executivo da OSS, que se tratava de dinamite que viria a ser utilizado para fazer explodir um comboio cheio de japoneses quando atravessava uma ponte.

Depois da OSS, foi trabalhar para a CIA, mas foi sempre pouco clara nas entrevistas que deu sobre o seu trabalho. Quando completou 100 anos em 2015, o então director da CIA John Brennan organizou uma celebração. McIntosh viria a morrer três meses depois.

Sandy Grimes, caçadora de toupeiras russas

Grimes liderou a equipa de caça à toupeira russa que tinha passado alguns dos maiores segredos da agência — os nomes dos informadores russos — ao KGB. Viria a descobrir-se que era Aldrich Ames.

Em meados dos anos de 1980, a CIA reparou que vários dos seus informadores russos estavam a desaparecer. Concluiu que uma toupeira se tinha infiltrado e que estava a entregar ao seu inimigo a informação mais valiosa que tinha, em plena Guerra Fria.

Foram precisos anos de paciência e trabalho árduo. Em 1992, Grimes começou a examinar as finanças de Ames e descobriu misteriosos depósitos bancários na sua conta, que eram feitos pouco depois de encontros com um especialista soviético em controlo de armas. Dois anos depois, Ames foi preso.

Jennifer Matthews, guerreira da al-Qaeda

Um dos primeiros membros da Alec Station, Matthews seguiu incansavelmente a al-Qaeda. Subiu rapidamente na hierarquia da agência e, no auge da caça a Osama bin-Laden, foi promovida a directora de uma base da CIA em Khost, Afeganistão. Em 30 de Dezembro de 2009, de acordo com um relatório interno da CIA, Matthews e os elementos da sua equipa falharam os procedimentos de segurança, permitindo a entrada do médico jordano Humam al-Balawi, próximo de bin-Laden, dentro da base, sem verificarem se trazia explosivos. 

Assim que entrou, al-Balawi fez-se explodir, matando Matthews e seis outros operacionais da CIA. Depois do ataque, surgiram críticas de que Matthews tinha subido depressa demais na carreira e que não era qualificada para gerir a base, o que desencadeou reacções de antigos e actuais oficiais da CIA segundo os quais os ataques eram sexistas. O papel de Matthews na agência foi retratado em 00.30 A Hora Negra/Zero Dark Thirty, e extensamente relatado pelo repórter do Washington Post Joby Warrick no seu livro The Triple Agent. 

 

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

 
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