Câmara aprova obras ilegais num edifício em vias de ser classificado

Uma obra que é considerada um exemplar da arquitectura moderna e uma referência a nível internacional vai perder direitos de autor – António Vicente de Castro, que dá nome a três ruas da cidade de Portimão - dada a descaracterização de que tem sido alvo.

Projecto original
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Projecto original
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Ampliação feita em 1997
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Ampliação feita em 1997
Alterações ilegais
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Alterações ilegais
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O Lar da Criança de Portimão — um projecto de António Vicente de Castro, um dos nomes da chamada Arquitectura Moderna do Movimento Internacional — vai passar a ser uma obra anónima. Ao longo de duas décadas, o edifício tem vindo a sofrer várias alterações para responder a novas valências da instituição. As obras de ampliação, ilegais, foram recentemente aprovadas pela câmara, com o parecer favorável de várias outras entidades. A Direcção Regional de Cultura do Algarve (DRCA) abriu, entretanto, um processo para que o edifício seja classificado como “monumento de interesse público”.

A Secção Regional Sul da Ordem dos Arquitectos queixou-se ao município da “destruição, subversão e adulteração” de um edifício que considera ser “uma obra de referência da arquitectura portuguesa no mundo”. Não teve êxito. O presidente da direcção da Lar da Criança, Mário Guerreiro, em declarações ao PÚBLICO, justificou as obras clandestinas com a “necessidade de adequar o espaço à funcionalidade de acordo com as exigências do Ministério de Educação para as salas de aulas no pré-escolar”.

A arquitecta Maria Luísa de Castro, filha do autor do projecto, considera que as ampliações feitas no edifício “descaracterizaram por completo o projecto original”. Desse facto, sublinhou, deu conhecimento à autarquia, apelando para que fosse chumbado o projecto das obras de alteração. O vice-presidente do município, Castelão Rodrigues informou que a deliberação, tomada no passado dia 6 de Fevereiro, “teve por base os pareceres favoráveis emitidos por todas as entidades oficiais que se tinham de pronunciar sobre a matéria”. Porém, adiantou, foi indeferida a construção de um novo bloco, a acrescentar ao lado norte — um pavilhão, com função multiusos. A construção, justificou o autarca, “não se enquadrava no sítio e obrigava a derrubar árvores”.

O Docomomo Internacional (comité internacional que trata da Documentação e Conservação dos edifícios, bairros e paisagens urbanas erguidas no quadro da arquitectura e do urbanismo do Movimento Moderno) pediu, entretanto, à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) a classificação do edifício, construído entre 1959 e 1962, por entender que estabelece “um diálogo directo entre a inovação e a tradição, representando o Movimento Moderno em Portimão”. Por seu lado, o responsável para direcção de Serviços de Bens Culturais, da DRCA, Rui Parreira, confirmou a “abertura do processo de classificação de monumento de interesse público” no dia 14 de Fevereiro. Desde modo, adiantou, será definida uma zona especial de protecção em redor do imóvel, numa área de 50 metros, abrangendo os edifícios do Tribunal de Portimão e a esquadra da PSP.

Edifício vanguardista

Na chamada Arquitectura Moderna do Movimento Internacional, referem José Manuel Fernandes e Ana Janeiro, no livro Arquitectura no Algarve, destacam-se na região três nomes: Manuel Laginha (1919-1985) associado a Loulé; Gomes da Costa (1921-2016) a Faro; e Vicente de Castro (1920-2002) a Portimão e Lagos. O actual Lar da Criança começou por ser, em 1959, um Centro de Assistência Social Polivalente, com estruturas de apoio à infância, maternidade e família (Dispensário Materno Infantil). À época, referem os autores, foi considerado “um edifício moderno, inovador e vanguardista”. Por sua vez, Rui Parreira é da opinião que estes três arquitectos algarvios, formados na Escola de Belas Artes do Porto (EBAP), são “uma referência a nível mundial”. Por isso, a DRCA vai mais longe, defendendo que venham a ser classificados de “interesse público” cinco edifícios de assistência social concebidos por este trio de arquitectos que se encontram em Portimão, Lagos, Aljezur, Loulé e Olhão,

O Hotel (antiga estalagem) São Cristóvão, em Lagos — resultante da sua tese de licenciatura, com 19 valores —, é o mais recente caso da destruição e apagamento da memória de alguém que definiu um espaço e marcou uma época na arquitectura. Na praia da Rocha, em Portimão, uma vivenda, do mesmo autor, sofreu várias alterações até ficar irreconhecível. “Tenho feito várias exposições à câmara de Portimão, nunca tive resposta”, lamenta Maria Luísa de Castro, lembrando que a primeira ampliação efectuada no Lar da Criança, em 1997, ainda em vida de seu pai e que contou com a sua participação, criou seis salas de aulas e instalações sanitárias, deixando livre o piso térreo para receios. Nos anos seguintes, diz, “fizeram várias obras ilegais e fecharam o piso térreo”, assente sobre pilares.

Em 2014, a direcção do Lar da Criança — Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) — apresentou à câmara uma proposta para licenciar os 311 metros de obras ilegais, mais um outro projecto de ampliação com 722 metros quadrados, a juntar aos 1967 metros quadros de área de construção do projecto inicial.

Maria Luísa de Castro, que é co-autora do projecto de alteração/ampliação da Lar da Criança, fez várias exposições à câmara, ao longo de quase de duas décadas, chamando a atenção para as alterações que “feriam de morte” o conceito e os traços essenciais do edifício original. A arquitecta municipal Patrícia Sant’Ana, num parecer assinado em 2014, lembrou que o “autor [arquitecto] goza de direitos morais sobre a sua obra, nomeadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuidade e integridade”. Porém, na mesma altura, a câmara, com base num parecer jurídico, considerou que a reivindicação da propriedade intelectual não estava na sua alçada de competências, caberia aos tribunais decidir.

Autor passa a anónimo

Mário Guerreiro, na qualidade de representante da IPSS, escreveu à herdeira de Vicente de Castro, há cerca de três anos, a comunicar que pretendia fazer alterações no edifício. O dono da obra, engenheiro de profissão, em declarações ao PÚBLICO, defendeu que “pode fazer as alterações pretendidas” ainda que sejam contra a vontade de entidades ligadas à defesa do património. Só admite ter uma restrição: “Não posso publicitar o edifício como sendo de autoria de Vicente de Castro”. O vice-presidente da secção regional sul da Ordem dos Arquitectos, João Sequeira, acha que existe “uma contradição” nesta declaração, tendo em conta a proposta da Docomomo Internacional (Documentação e Conservação da Arquitectura do Movimento Moderno). A presidente da associação, Ana Tostões, escreveu à presidente da câmara de Portimão, Isilda Gomes, no dia 24 de Fevereiro, lembrando que se trata de uma obra de “valor inestimável, devendo ser preservada para a posteridade e oferecida às gerações vindouras nas suas premissas originais”. A direcção regional da cultura, no mesmo sentido, defende que o edifício deve ser classificado de “monumento de interesse público”, cabendo a última palavra ao ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes.

Apesar da destruição da sua obra, com o apoio tácito da autarquia, Vicente de Castro dá nome a três ruas da cidade de Portimão. Mais, em 2010, a câmara prestou-lhe homenagem atribuindo-lhe a “medalha de mérito municipal” grau prata. Na publicação distribuída para assinalar o acontecimento lê-se: “Homem de forte carácter e extrema integridade, nunca abdicou de intervir sempre que necessário e sob uma perspectiva formativa”. Porém, reconheceu o então presidente da câmara, Manuel da Luz, “viu muitas vezes a sua carreira prejudicada, num meio estagnado e avesso a um pensamento moderno”. Muitas das suas obras estão hoje descaracterizadas, pelo abandono, ou por alterações feitas pelos donos, sem respeito por quem concebeu a obra.

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